quarta-feira, 17 de julho de 2013

O Carlos Sá não é a Popota



A televisão, a televisão, a televisão …

Qual é o vosso fetiche com a televisão?!

Deixem lá a televisão!

Neste desporto dispomos de um privilégio ímpar que é o da possibilidade de convívio com atletas de topo, que treinam nos mesmos locais que nós e com quem facilmente chegamos à fala, trocamos impressões, pedimos conselhos, escutamos relatos, partilhamos emoções.

A nossa participação em provas em que os mesmos estão presentes, misturando-se profissionais com amadores e mesmo com “aprendizes de feiticeiro” é seguramente um factor de motivação, dificilmente ao alcance da esmagadora maioria dos desportos.

Todos nós sabemos dar o devido valor ao Carlos Sá e a tantos outros, e seguramente que os enche também de orgulho e alegria saber que são acarinhados pelos seus pares.

O que procuram quando se lançam nestas aventuras que nos alimentam o imaginário só eles poderão responder, mas atrevo-me a arriscar que buscam sobretudo emoções. Não é seguramente essa tal de fama que os move.

Não ignoro que o destaque nos meios de comunicação é muito importante para que o Carlos obtenha os indispensáveis patrocínios, mas depois de mais este feito estou certo de que não lhe faltarão.
Quanto à tv, mantenham-na desligada que é a melhor atitude que podemos ter em prol da nossa sanidade mental.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

UTSF 2013 - antes quebrar que torcer



Deito-me cerimoniosamente num banco de jardim à sombra de um carvalho, enquanto que, de olhos semicerrados, vejo passar diante de mim uma sequência desorganizada de imagens que se vão sucedendo de forma torrencial e aparentemente desordenada, como que peças de um puzzle que não sei ainda se vai ser montado.

Num momento estou tranquilamente sentado num ramo de uma árvore, em plena Besta a hidratar e a recuperar forças, convocando todos os sentidos para absorver a imponência desta íngreme escombreira vomitada das entranhas da serra, enquanto vou perscrutando o horizonte em busca do caminho até então percorrido, e no instante seguinte vejo-me já a escorregar um qualquer penedo do rio Paivô, com o consequente mergulho naquelas cristalinas águas.

Recordo como às três e meia da manhã não conseguia pregar olho. À ansiedade própria do momento veio juntar-se o vento, que ao abanar aqueles carvalhos e araucárias que circundavam a nossa frágil tenda parecia agarrar-me pelos ombros enquanto me abanava e ia perguntando se tinha bem a certeza de me querer uma vez mais lançar nesta brutal aventura.

O facto de ter calor em calções e t-shirt, deitado por cima do saco-cama em plena serra da Freita àquela hora da manhã era já um prenúncio do que nos esperaria.

Levantara-me para passar alguma água pelo rosto e acabei por tomar um duche. Deambulei pelo parque, iluminado por um magnífico luar, enquanto fui observando a enérgica porém silenciosa azáfama em que a vasta equipa da organização se desdobrava para que nada falhasse na hora do tiro de partida.

Recordo os primeiros quilómetros percorridos a ritmo controlado, contrastando com a impaciência de atletas mais jovens que se lançavam furiosamente pelas ladeiras abaixo e que invariavelmente ultrapassávamos nas subidas, para logo em seguida se repetir a mesma sequência.

Vou recordando rostos e conversas. O João, o Luis, o Pedro, o Joaquim e tantos outros com quem fomos traçando a rota que nos trouxe até este quilómetro cinquenta. Uma vez mais me interrogo por onde andará o Carlos, esse amigo tão recente mas que ocupa já um lugar tão importante na minha vida como se o conhecesse desde sempre.

De forma entrecortada vou ouvindo vozes e pedaços soltos de conversas: um atleta que está a soro, um outro que teve um ataque de pânico, um que torceu o joelho, muitos desidratados. Ouço os motores das carrinhas que vão chegando vazias e partindo repletas de atletas que não resistem às agruras da serra nem às condições meteorológicas.

Ainda não sei como vou sair daqui, mas sei que vou sair acompanhado. Até aos 40 quilómetros o Rui havia discretamente moderado o seu ritmo para que eu o pudesse acompanhar e não seria agora que o duo se iria desfazer.

Ouço finalmente a sua voz, o que é um bom augúrio, pois a saída da Besta para um planalto árido e nu como um joelho, em pleno pico de calor e onde não corria uma brisa, atirou-nos para um estado tal de fraqueza que cheguei a temer a desistência. À chegada aqui, o Rui sentara-se à sombra a comer e a beber, tentando recuperar forças.

Reconheço também a voz do Luis, do Fernando e da esposa e até a do Sr. António do Alfaiate, para além de muitas outras desconhecidas, mas a do Rui sobressai. Ele ainda não sabe, mas eu tenho já a certeza de que a prova, para nós, está prestes a ser retomada. Ergo-me lentamente, recoloco a mochila, pego nos bastões e pergunto ao Rui se vai passar o resto do dia na conversa, mas quando dou por mim já ele está novamente a rebocar-me.

O lugar-comum que atesta poder a cabeça mais do que as pernas aplica-se na perfeição àquilo que foi a minha prova entre os quilómetros 50 e 60, e que se pode resumir na capacidade de deixar bem claro ao corpo que quem manda é a cabeça e que em momento algum vai haver negociação. Com a boca como única aliada do cérebro, mereço a partir daqui o epíteto de Rezingão com que o Rui me crismou.

Mais rio, mais subidas a pique e descidas infernais. Uma e outra vez a sensação de que nada mais importa do que colocar um pé à frente do outro e de que cada passada conseguida é uma importante batalha vencida rumo a um objectivo que irá inevitavelmente ser cumprido.

A chegada à Lomba é um momento épico, em que somos saudados como heróis, como se a prova estivesse concluída e não tivéssemos ainda 10 brutais quilómetros pela frente. Companheiros que nos retiram as mochilas dos ombros, nos enchem os bidons e nos preparam os frontais que iremos precisar daquele ponto em diante, nos colocam tijelas de sopa nas mãos e as recolhem mal acabamos de sorver para logo nos entregarem uma bifana e uma cerveja já aberta. Gente boa, muito boa, ao longo de toda a prova. Uma organização inexcedível, composta por atletas e seus familiares, que sabem como ninguém a importância destes gestos e atitudes. Rostos que jamais esquecerei.

Dali em diante a progressão fazia-se de noite, com a dificuldade acrescida de só dispormos de uma hora até ao controlo da Castanheira. Alcançamos e Célia Azenha e agora como trio dispusemo-nos a chegar ao Merujal, mas estávamos longe de imaginar as peripécias que nos esperavam. Num ponto em que o trilho atravessa a estrada aparece um carro da organização e pelo rádio ouvia-se claramente a voz do director da prova dizendo que acabava de barrar o caminho a dois atletas. Não nos resignamos e continuamos, agora pela estrada, para logo adiante nos embrenharmos em busca do trilho, mas onde haveríamos de nos perder e fazer várias tentativas de incursão pelo meio de mato alto. Numa altura em que a Célia estava já sem frontal conseguimos, numa das nossas incursões exploratórias, entroncar no PR7, cujo troço final percorremos em direcção à meta, onde chegamos 19 horas após termos partido, com bem mais de 70 quilómetros, exaustos, sujos e arranhados mas com um indisfarçável sorriso nos lábios.

Quanto ao Rui, confirmo a certeza de que nos vamos aturar até sermos velhinhos.