domingo, 15 de dezembro de 2013

Até já


Quatro anos volvidos sobre esse duplamente memorável domingo de Outubro de 2009, em que pela primeira vez corri pela equipa Porto Runners e em que baixei dos 43 minutos nos 10km, é chegada a hora de agradecer a todos quantos ao longo destes quatro anos me acolheram nessa grandiosa agremiação que dá pelo nome de Porto Runners – Clube de Corrida.

Com aquela camisola registei memoráveis momentos, como sejam uma maratona corrida nos antípodas, a minha estreia no trail, ou as inúmeras excursões desportivo-gastronómico-culturais nas quais, com amigos do nosso e de outros clubes, participei no mais variado tipo de provas em diferentes cantos deste país; não esquecendo ainda um punhado de incursões além fronteira para correr outras tantas maratonas.

Trata-se de um clube competentemente presidido pelo Fernando Leite, a quem deixo uma palavra especial de agradecimento, e que, diga-se em abono da verdade, cumpre plenamente os objectivos inscritos no regulamento interno, dos quais destaco o da promoção da corrida enquanto parte de um estilo de vida saudável, fisicamente activo e mentalmente são.

Todavia, um clube único no panorama nacional, uma referência incontornável do maratonismo amador, com cerca de 300 associados e perto de duas centenas de maratonistas, e que pode, sem qualquer favor, ser mesmo considerado um caso de estudo, tem já a responsabilidade de ser muito mais do que apenas um grupo de amigos que se junta para correr.

Um clube que tem, entre os seus associados, profissionais das mais variadíssimas áreas, que possui know-how, orçamento e dimensão consideráveis poderia e deveria apresentar um conjunto de iniciativas que tornassem o clube mais atractivo para os seus associados. Se calhar o problema reside em mim, que à medida que vou ficando cada vez mais veterano gosto de acreditar que me vou tornando mais tolerante mas, paradoxalmente, vejo-me mais inflexível. Creio, todavia, que apenas exijo a cada um de acordo com as suas capacidades.

Na verdade, desde a primeira hora que registei o orgulho de fazer parte deste grupo de amigos como única vantagem em pertencer aos PR, porquanto a minha logística profissional e familiar não me permite integrar os treinos dos PR – quer se trate dos regulares quer dos extraordinários, que por azar meu, normalmente coincidem com alguma prova no Grande Porto.

Como toda a gente, tenho os meus gostos pessoais, as minhas crenças e as minhas ideologias; que vivo por vezes de forma enérgica, mas que necessitam ser manifestamente intensas para me fazerem militar numa qualquer fileira. 

Saio apenas de associado, agradecendo tudo aquilo que os Porto Runners me proporcionaram, mas não vou a lado nenhum; estarei sempre por aqui ... a correr ao vosso lado.


If a plant cannot live according to its nature, it dies; and so a man.
Henry David Thoreau

sábado, 7 de dezembro de 2013

Histeria colectiva


Acordo cedo. Muito cedo. Demasiadamente cedo, para um sábado. Abro, a custo, os olhos e mantenho-os semi-cerrados. Na realidade, e como é habitual, abro apenas o esquerdo; porque, também como é costume, acordo virado para a janela.

Apercebo-me que a persiana não ficou completamente fechada. Verifico isso porque há uma fina lâmina de sol que persiste em penetrar por entre duas réguas.

Sol? Aí está o incentivo que me faltava. Arrasto-me até à sala – que dorme sempre de persianas abertas – e confirmo a sua presença. Não há nada como uma fria mas soalheira manhã de Outono. Afasto as cortinas enquanto simultaneamente fecho os olhos e abro os braços. Assim permaneço, a usufruir deste privilégio matinal, durante aqueles dois ou três minutos que se transformam em eternidade.

Abro contrariada e lentamente os olhos. Grande algazarra ali adiante. Não, não são apenas a habituais e odiosas gaivotas. Há silhuetas, voos e bateres de asas bastante diferenciados. Garças já por aqui andam há umas semanas, e aqueles voos paralelos ao espelho de água são típicos dos patos – mais raros mas também usuais nesta época. Há, no entanto, ali algo que eu nunca vi por estas bandas: permanecem calmamente à superfície, aparentemente em inocente repouso até que, repentinamente, mergulham e desaparecem durante largos segundos. Já vi patos fazerem isto. Mas não permanecem tanto tempo submersos nem tem o pescoço tão comprido.

Corro à casa de banho e mergulho a cara em água fresca. Regresso à janela já munido de binóculos. Gansos! São gansos! Nunca os tinha visto por aqui.

Lá estão as garças no seu voo simultaneamente desengonçado e majestoso, sobrevoando tudo e todos, com a calma de quem todo um dia tem pela frente. Os patos, que ora voam, ora aterram planando na superfície de água mergulhando durante muito breves instantes. E ainda as gaivotas: aquelas ratazanas voadoras, como muito bem Sepúlveda lhes chamou um dia, com um voo pouco gracioso e uma postura parasita.

A grande novidade é a presença dos gansos. Que sorte! Que privilégio! Ao fim de alguns minutos vejo emergir um deles com um peixe na boca.

A vida pode, afinal, ser bela. Muito bela. No meio deste raro despertar assalta-me repentinamente o h5enenãoseidasquantas. Será que houve alteração das rotas migratórias? Bolas! Odeio fazedores de notícias!

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A ASAE ainda não se pronunciou ...



Espontaneidade. Por força da sua raiz etimológica a espontaneidade exprime, antes de mais, a qualidade ou carácter do agente que opera por sua própria iniciativa, e não como resposta directa a uma incitação vinda de fora. Espontâneo será, pois, o que não foi provocado…”
[Grande Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura]

Muito se tem falado acerca da perigosidade intrínseca às provas de trail e à segurança, ou falta dela, e da necessidade de as entidades organizadoras deste tipo de eventos apostarem cada vez mais neste aspecto. É, aliás, lugar-comum ouvir-se algo como “um dia vai morrer alguém em prova e a partir desse dia as coisas irão mudar”.

Todavia, é igualmente generalizada a opinião de que cabe ao atleta a responsabilidade primeira pela sua própria segurança. Motivo pelo qual muitos seremos aqueles que concordamos com acções prévias a cada prova que visem consciencializar cada um de nós para este problema sério.

 Fazer o participante reflectir sobre a sua condição física e ainda acerca de pontos tão distintos quanto o tipo de terreno, eventuais condições atmosféricas ou equipamento necessário, através da assinatura de um documento em que aquele assegura possuir robustez física e estar consciente da aventura em que se vai meter, pode parecer-me algo exagerado, mas aceito sem discussão.

Outra coisa completamente diferente é, a duas semanas do início da prova, pretender a organização de um evento, através da paradoxal assinatura forçada de uma declaração de espontaneidade, de legalidade duvidosa e que não constava do regulamento da prova aquando da inscrição e pagamento da mesma, passar o ónus de qualquer fatalidade que possa ocorrer para o participante, desobrigando-se a mesma de fazer face a qualquer tipo de despesa, porquanto o participante “assume, em carácter exclusivo e excludente, as consequências que possam advir de qualquer tipo de contingência ...” e por aí fora, incluindo falecimento e só faltando mesmo obrigar o participante a lavrar um pedido de desculpas pelos transtornos causados na eventualidade de uma fatalidade.

O que mais me entristece é que este “documento” tenha sido concebido no seio de uma organização liderada por alguém por todos nós muito estimado, e não apenas enquanto atleta, e que mais do que ninguém sofre na pele as agruras deste tipo de provas.

Acresce que especificamente nesta prova era mais do que desnecessária uma atitude destas, haja em vista tratar-se da prova de trail onde me sinto mais acompanhado em termos de segurança. É, aliás, a prova que melhor classificaria, na generalidade, mas é sobre segurança que agora escrevo … e sobre desresponsabilização, já agora … e de lavagem de mãos … e de desapontamento … grande, muito grande …

Espontaneidade foi o que me fez ir ao aeroporto de Pedras Rubras receber o Carlos Sá, quando brilhantemente ganhou a Badwater, e que me fará lá voltar para o aclamar, a ele a outros que continuam a receber o meu respeito e admiração.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

O Carlos Sá não é a Popota



A televisão, a televisão, a televisão …

Qual é o vosso fetiche com a televisão?!

Deixem lá a televisão!

Neste desporto dispomos de um privilégio ímpar que é o da possibilidade de convívio com atletas de topo, que treinam nos mesmos locais que nós e com quem facilmente chegamos à fala, trocamos impressões, pedimos conselhos, escutamos relatos, partilhamos emoções.

A nossa participação em provas em que os mesmos estão presentes, misturando-se profissionais com amadores e mesmo com “aprendizes de feiticeiro” é seguramente um factor de motivação, dificilmente ao alcance da esmagadora maioria dos desportos.

Todos nós sabemos dar o devido valor ao Carlos Sá e a tantos outros, e seguramente que os enche também de orgulho e alegria saber que são acarinhados pelos seus pares.

O que procuram quando se lançam nestas aventuras que nos alimentam o imaginário só eles poderão responder, mas atrevo-me a arriscar que buscam sobretudo emoções. Não é seguramente essa tal de fama que os move.

Não ignoro que o destaque nos meios de comunicação é muito importante para que o Carlos obtenha os indispensáveis patrocínios, mas depois de mais este feito estou certo de que não lhe faltarão.
Quanto à tv, mantenham-na desligada que é a melhor atitude que podemos ter em prol da nossa sanidade mental.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

UTSF 2013 - antes quebrar que torcer



Deito-me cerimoniosamente num banco de jardim à sombra de um carvalho, enquanto que, de olhos semicerrados, vejo passar diante de mim uma sequência desorganizada de imagens que se vão sucedendo de forma torrencial e aparentemente desordenada, como que peças de um puzzle que não sei ainda se vai ser montado.

Num momento estou tranquilamente sentado num ramo de uma árvore, em plena Besta a hidratar e a recuperar forças, convocando todos os sentidos para absorver a imponência desta íngreme escombreira vomitada das entranhas da serra, enquanto vou perscrutando o horizonte em busca do caminho até então percorrido, e no instante seguinte vejo-me já a escorregar um qualquer penedo do rio Paivô, com o consequente mergulho naquelas cristalinas águas.

Recordo como às três e meia da manhã não conseguia pregar olho. À ansiedade própria do momento veio juntar-se o vento, que ao abanar aqueles carvalhos e araucárias que circundavam a nossa frágil tenda parecia agarrar-me pelos ombros enquanto me abanava e ia perguntando se tinha bem a certeza de me querer uma vez mais lançar nesta brutal aventura.

O facto de ter calor em calções e t-shirt, deitado por cima do saco-cama em plena serra da Freita àquela hora da manhã era já um prenúncio do que nos esperaria.

Levantara-me para passar alguma água pelo rosto e acabei por tomar um duche. Deambulei pelo parque, iluminado por um magnífico luar, enquanto fui observando a enérgica porém silenciosa azáfama em que a vasta equipa da organização se desdobrava para que nada falhasse na hora do tiro de partida.

Recordo os primeiros quilómetros percorridos a ritmo controlado, contrastando com a impaciência de atletas mais jovens que se lançavam furiosamente pelas ladeiras abaixo e que invariavelmente ultrapassávamos nas subidas, para logo em seguida se repetir a mesma sequência.

Vou recordando rostos e conversas. O João, o Luis, o Pedro, o Joaquim e tantos outros com quem fomos traçando a rota que nos trouxe até este quilómetro cinquenta. Uma vez mais me interrogo por onde andará o Carlos, esse amigo tão recente mas que ocupa já um lugar tão importante na minha vida como se o conhecesse desde sempre.

De forma entrecortada vou ouvindo vozes e pedaços soltos de conversas: um atleta que está a soro, um outro que teve um ataque de pânico, um que torceu o joelho, muitos desidratados. Ouço os motores das carrinhas que vão chegando vazias e partindo repletas de atletas que não resistem às agruras da serra nem às condições meteorológicas.

Ainda não sei como vou sair daqui, mas sei que vou sair acompanhado. Até aos 40 quilómetros o Rui havia discretamente moderado o seu ritmo para que eu o pudesse acompanhar e não seria agora que o duo se iria desfazer.

Ouço finalmente a sua voz, o que é um bom augúrio, pois a saída da Besta para um planalto árido e nu como um joelho, em pleno pico de calor e onde não corria uma brisa, atirou-nos para um estado tal de fraqueza que cheguei a temer a desistência. À chegada aqui, o Rui sentara-se à sombra a comer e a beber, tentando recuperar forças.

Reconheço também a voz do Luis, do Fernando e da esposa e até a do Sr. António do Alfaiate, para além de muitas outras desconhecidas, mas a do Rui sobressai. Ele ainda não sabe, mas eu tenho já a certeza de que a prova, para nós, está prestes a ser retomada. Ergo-me lentamente, recoloco a mochila, pego nos bastões e pergunto ao Rui se vai passar o resto do dia na conversa, mas quando dou por mim já ele está novamente a rebocar-me.

O lugar-comum que atesta poder a cabeça mais do que as pernas aplica-se na perfeição àquilo que foi a minha prova entre os quilómetros 50 e 60, e que se pode resumir na capacidade de deixar bem claro ao corpo que quem manda é a cabeça e que em momento algum vai haver negociação. Com a boca como única aliada do cérebro, mereço a partir daqui o epíteto de Rezingão com que o Rui me crismou.

Mais rio, mais subidas a pique e descidas infernais. Uma e outra vez a sensação de que nada mais importa do que colocar um pé à frente do outro e de que cada passada conseguida é uma importante batalha vencida rumo a um objectivo que irá inevitavelmente ser cumprido.

A chegada à Lomba é um momento épico, em que somos saudados como heróis, como se a prova estivesse concluída e não tivéssemos ainda 10 brutais quilómetros pela frente. Companheiros que nos retiram as mochilas dos ombros, nos enchem os bidons e nos preparam os frontais que iremos precisar daquele ponto em diante, nos colocam tijelas de sopa nas mãos e as recolhem mal acabamos de sorver para logo nos entregarem uma bifana e uma cerveja já aberta. Gente boa, muito boa, ao longo de toda a prova. Uma organização inexcedível, composta por atletas e seus familiares, que sabem como ninguém a importância destes gestos e atitudes. Rostos que jamais esquecerei.

Dali em diante a progressão fazia-se de noite, com a dificuldade acrescida de só dispormos de uma hora até ao controlo da Castanheira. Alcançamos e Célia Azenha e agora como trio dispusemo-nos a chegar ao Merujal, mas estávamos longe de imaginar as peripécias que nos esperavam. Num ponto em que o trilho atravessa a estrada aparece um carro da organização e pelo rádio ouvia-se claramente a voz do director da prova dizendo que acabava de barrar o caminho a dois atletas. Não nos resignamos e continuamos, agora pela estrada, para logo adiante nos embrenharmos em busca do trilho, mas onde haveríamos de nos perder e fazer várias tentativas de incursão pelo meio de mato alto. Numa altura em que a Célia estava já sem frontal conseguimos, numa das nossas incursões exploratórias, entroncar no PR7, cujo troço final percorremos em direcção à meta, onde chegamos 19 horas após termos partido, com bem mais de 70 quilómetros, exaustos, sujos e arranhados mas com um indisfarçável sorriso nos lábios.

Quanto ao Rui, confirmo a certeza de que nos vamos aturar até sermos velhinhos. 

domingo, 16 de junho de 2013

Sentir a Freita

















Com os meus amigos Rui Pinho e Carlos Natividade fiz ontem uma incursão de cerca de 8 horas na Serra Freita, naquele que pretendemos que fosse um treino preparatório para a grande aventura de 70km à qual nos lançaremos dentro de duas semanas.
De Candal a Gourim, passando por Covelo de Paivô e pelos coutos mineiros de Regoufe e de Drave, regressando por Póvoa das Leiras, foram mais de 40km, com um desnível positivo acumulado superior a 2000m que, por trilhos outrora calcorreados por gentes ligadas à efémera febre pesquisadora do volfrâmio, naquele que foi um dos nossos micro Klondike, nos transportaram para tempos em que a vida era de uma dureza brutal mas que a ilusão de um certo ouro negro permitiu o atrevimento do sonho.
À semelhança do que aconteceu um pouco por todo o Norte de Portugal, também a Freita acolheu uma efémera porém marcante experiência de exploração mineira quando, nos alvores da segunda grande guerra, um punhado de gente se deu conta de que por contraste com a fraca fertilidade destas abruptas encostas rochosas havia uma riqueza que poderia ser extraída do seu substrato.

Com a ilusão do lucro fácil e rápido, igualmente de outras paragens demandaram a estas terras pesquisadores e aventureiros esventrando o solo um pouco por todo o lado, na esperança de encontrar volfrâmio que, por se tratar de um minério fundamental ao fabrico de armamento, assume um papel determinante ao esforço de guerra, atingindo nesse contexto cotações excepcionais.

No caso particular da Serra da Freita, enquanto que os ingleses iniciaram a sua exploração mineira em Regoufe, os seus beligerantes inimigos instalaram-se em Rio de Frades, a pouco mais de uma dezena de quilómetros, mas viviam numa tal paz operacional que até lhes permitiu um entendimento com vista à divisão de esforços de construção de uma estrada que servia os propósitos destes dois supostos inimigos mas aliados no que ao lucro diz respeito.
Tratou-se de explorações subterrâneas de dimensão considerável, mas também pulularam um pouco por toda a serra outras de muito pequena dimensão, algumas delas mesmo furtivas ou ocasionais, que se ocupavam das jazidas mais pobres e superficiais.

Todo o material rochoso trazido à superfície era conduzido à lavaria onde era lavado em abundante água corrente, e posteriormente criteriosamente separado o minério da rocha sem valor, designada por ganga. Nas mesas de britagem, numa tarefa essencialmente ocupada por mulheres, o material era esmagado com pesadas marretas, promovendo-se assim nova separação de minério e ganga, procedendo-se seguidamente a nova escolha manual. O concentrado de minério no final obtido tinha uma granulometria muito fina, muito próxima do pó, e era armazenado em pequenos sacos de tecido.

O volfrâmio era escoado essencialmente através duma companhia instalada em Arouca, mas são inúmeros os relatos de histórias mais ou menos românticas de minério que saía da serra a coberto da noite, em direcção ao Porto e à Galiza, onde era vendido a preços bem mais apetecíveis.

A entrada desse ouro negro na vida de Arouca veio impulsionar o comércio, por via do súbito aparecimento de endinheirados “volframistas”, nome que albergava gentes tão distintas como sérios proprietários rurais agora convertidos à mineração, até “pilhas” (nome atribuído a aventureiros que se dedicavam ao roubo de minério em explorações alheias e posterior venda no mercado negro) e contrabandistas.

Apareceram novos estabelecimentos comerciais e passou a haver um permanente clima de festa, com as tascas a colocarem altifalantes à porta, onde vomitavam ininterruptamente música. Foi um tempo em que um povo com vidas miseráveis agarrou com ambas as mãos a ilusão da riqueza e que experimentou sensações nunca antes sonhadas, algumas tão aparentemente simples como comer até não ter fome. Sucediam-se episódios de volframistas que apesar de analfabetos exibiam elegantes canetas, que usavam relógio de bolso a par com mais um em cada pulso, que enrolavam tabaco em notas de mil escudos e que desafiavam a própria imaginação.

Toda esta euforia não significou, porém, progresso porquanto não houve investimento. Pelo contrário, com o fim da guerra e a descida na cotação do volfrâmio, este deixou de ter interesse económico e os terrenos voltaram à sua função agrícola. Proprietários de estabelecimentos comerciais com os seus livros de débitos repletos viram-se na ruína e a década que se seguiu foi para todos muito penosa. Foi como o abrupto acordar de um conto de fadas e subsequente mergulho num pesadelo.

segunda-feira, 4 de março de 2013

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

III Trilho dos Abutres – que faço eu aqui?

Ouço a lenha a crepitar e sinto o confortável calor emanado a curta distância, ainda assim baixo os olhos e confirmo que não tenho os pés mergulhados numa bacia com água. Levanto os olhos e concentro-me novamente no assunto em debate. De passagem deito um olhar ao chouriço que continua a assar demoradamente, indiferente ao que se passa à sua volta.
 
Acarinho cuidadosa e demoradamente o copo de maduro tinto com a calma e o zelo com que se embala um recém-nascido.
 
Não obstante a tertúlia ir correndo de forma prazenteira e interessante debato-me constantemente com a torrente de imagens que insiste em suceder-se abruptamente à frente dos meus olhos. Enquanto perscruto o horizonte em busca de uma fita branca quase embato com a cabeça num tronco que se atravessa ao nível dos olhos. Ouço o meu próprio ofegar, enfio os pés na lama. Olho para debaixo da mesa e confirmo que não os tenho enfiados numa bacia de água.
 
Desperto lentamente deste torpor. Ouço agora o Pedro Amorim que nos fala da Badwater, da Comrades, do Carlos Sá e do Aconcágua. Vejo as minhas mãos enlameadas enfiadas numa taça de batatas fritas, vejo o desespero da Célia Azenha ao descobrir a avaria no seu frontal. Subitamente, um arrepio, só pode ser de emoção.
 
Intervém agora o Jorge Serrazina, com aquele inconfundível sorriso que inspira a maior das calmas deste mundo, mas eu já não o ouço porque me passa agora diante dos olhos uma sucessão interminável de imagens desordenadas. Montanhas, vales, penedos, rio, árvores, luz, breu, mais penedos, mais água, subidas intermináveis, trilhos, musgo e verde, muito verde, e castanho, muito castanho.
 
Sobressalto-me com uma gargalhada colectiva que percebo remotamente ter sido provocada por um comentário jocoso do Vitor Dias. Volto a concentrar-me no presente e ouço a Susana descrever pormenores da maratona des Sables e das suas aventuras nos Pirenéus. Tento imaginar-me lá e logo sou transportado para Gondramaz. Vejo desfiar pelo meu cérebro uma sucessão interminável de fotogramas aparentemente sem sequência lógica: tão depressa estou a olhar para o chão e a ver as minhas sapatilhas enterradas na lama, como no momento seguinte alargo a vista ao horizonte e absorvo a magnífica envolvente da serra, que imediatamente é substituída por um tronco atravessado a 10 cm dos meus olhos (outra vez este tronco?!), trilhos, água, musgo, penedos, subidas intermináveis, mochilas, cabos, fitas brancas, árvores, descidas impossíveis, conversas, e rostos, muitos, uns conhecidos e outros que passaram a sê-lo.
 
Olho para debaixo da mesa e, não, não tenho os pés enfiados dentro de uma bacia de água. Levanto os olhos. A Glória Serrazina debate-se desesperadamente com Hipnos e Morfeu, que em conjunto a tentam convocar. O murmúrio de vozes à minha volta parece distante e não consegue arrancar-me a esta letargia.
 
De repente toda a gente se levanta. Olho para o relógio: uma da manhã. Mexo cerimoniosamente o corpo, dorido de um interminável esforço ininterrupto de mais de 10 horas. Levanto-me com cuidado para não entornar a bacia de água onde tenho mergulhados os pés. Entre abraços, agradecimentos aos inefáveis companheiros que desde há meses trabalham para que esta tenha sido para todos nós uma aventura inesquecível, promessas de regresso e de amizade eterna surge o Telmo com um cabaz repleto de fumeiros, broa e maduro da região. Afinal a festa prolongou-se até às 3 da matina, uma vez que não é possível prolonga-la até Janeiro de 2014.
 
Desta vez fico em pé; não quero arriscar a inadvertidamente enfiar os pés na tal bacia de água gelada.