terça-feira, 18 de setembro de 2012

Ponta a ponta


Cerimoniosamente curvo-me para me descalçar, após o que me sento num rochedo e mergulho os pés no Atlântico. Só então lanço um último olhar ao gps, antes de o desligar e o retirar do pulso, não sem antes confirmar uma vez mais a extensão da aventura: 67km solitariamente percorridos ao longo de todo o dia, desde a Ponta dos Rosais até ao Topo.

São agora cinco da tarde e um turbilhão de imagens assalta-me a memória recente e passa à frente dos meus olhos, mesmo quando mergulho totalmente no Atlântico e me deixo arrastar pela ondulação.

Após umas braçadas indolentes regresso ao rochedo para o qual me ergo lentamente. Vou alongando os músculos enquanto aguardo que o sol do final da tarde me vá secando as carnes, antes de poder voltar a vestir-me.

Com o olhar fixo no horizonte vou fazendo o filme da aventura que agora termina e que na realidade começou com uma provocação lançada no bem regado jantar da véspera, na Casa da Ermida, um turismo de habitação na Ribeira do Nabo: “Então não eras tu o homem que queria percorrer a ilha de ponta a ponta? Já cá estamos há uma semana e ainda nem tiraste as sapatilhas do saco!”

Quando às 7 da manhã abro a porta de casa e me deparo com aquele céu pesado, com a nuvem quase a tocar-me na cabeça, de imediato me preparo para o arrepio, mas aguardo em vão. Não estou no Porto, mas sim nos Açores, onde a amplitude térmica é praticamente inexistente.

Em bicos de pés dirijo-me para a cozinha, onde aparece em seguida o meu irmão mais novo, que organiza um ligeiro briefing enquanto eu vou preparando um frugal pequeno-almoço. A sugestão do Jaime era simples mas pareceu-me eficaz: marcaríamos idênticos pontos numerados em dois mapas de estradas, e eu iria enviando periódicas mensagens de telemóvel informando a minha posição aproximada, ligando-lhe quando quisesse ser recolhido.

– Ó Jaime já chega, não marques mais pontos.

– Afinal quantos quilómetros pensas fazer?

– Depois da jantarada de ontem?! Sei lá … entre 10 e 30, mas marca lá os mapas até ao final, porque assim já fica para quando fizer a próxima etapa.

Domingo de manhã, numa ilha com dez mil habitantes somos os únicos na estrada. Ponta dos Rosais. O Faial ao longe. Um último abraço, desejos de boa sorte e lá parto por um estradão de terra, com os 1200ml de água a pesarem-me nos cantis e o impulso de despejar pelo menos metade. Em boa hora não o fiz.

A calma é total e a ilha parece totalmente inabitada, à excepção de algumas das trinta mil vacas com quem me vou cruzando. O verde domina, salpicado aqui e ali por sebes de hortênsias. Ao longe vejo o Pico. Faço alguns quilómetros em alcatrão. Ao fim do sexto, deixo de contar os coelhos atropelados.

Primeira fonte, primeira paragem, primeiro sms: “10:25. Ponto 9. 2:00h de treino. 16km. Tudo ok”. A água, por estas bandas, tem sempre uma cor estranha, pelo que opto por me refrescar, molhar o boné, mas beber apenas dos cantis, deixando a das fontes lá mais para diante, quando aqueles começarem a esvaziar. Mal eu sabia que esta seria a primeira e última fonte ao longo de 67km e mais de 9 horas de aventura.

Com o ânimo em alta, arranco para uma subida de cerca de 7km, feita maioritariamente a passo e a entrar progressivamente na nuvem. O mapa é fraquíssimo mas como tem os cumes (picos) assinalados permite-me optar por um caminho de terra que me parece ser a descer, o que se confirma. Faço quatro magníficos quilómetros por um estradão de terra que vai descaindo ligeiramente para o flanco norte e que me retira da nuvem e me devolve o sol. Vejo lá em baixo uma fajã e ao longe a Graciosa.

Termina a descida. Primeiro gel. Uns goles de água. Contidos, pois não voltei a avistar fontes desde a última paragem. Segundo sms: “12:00. Entre pontos 14 e 15. 3:30h de treino. 28km. Sinto-me bem. Vou continuar”

Consulto o mapa e resolvo arriscar por um local por onde não tem qualquer caminho assinalado. Saiu-me bem, há trilho. A topografia vai agora oscilando entre subidas e descidas, pelo que abrando o ritmo. Um coelho salta ao caminho e corre umas dezenas de metros à minha frente até desparecer num arbusto.

Começo a ficar com fome e sede. Consulto o mapa em busca de uma estrada. Opto por um caminho que me despejará no alcatrão à entrada de uma pequena povoação onde espero encontrar um café aberto.

Tal como previsto, abordo a estrada à entrada do Norte Pequeno. Estou numa povoação fantasma! Bem sei que é domingo e hora de almoço. Avisto um café. Fechado! Continuo em busca de um segundo, que não tarda em aparecer. Fechado! Nem vivalma. Um fila de S. Miguel olha-me do outro lado da estrada. Paro de correr e avanço cautelosamente. Tomo segundo gel, dou uns goles ainda mais contidos e preparo-me para enviar terceiro sms. Ao pegar no telemóvel apercebo-me de que o segundo nunca chegou a ser enviado.

Uma da tarde. 35 quilómetros percorridos. Sede e fome. Cafés fechados. Provisões: 400ml de água, duas embalagens de gel. Vou-me encaminhando para o final da povoação, com o telemóvel na mão, atento a uma eventual captação de rede, enquanto decido o que fazer.

Opto por seguir pela estrada, que haverá por me levar a outra povoação e até pode ser que pelo caminho encontre um café. Subo ligeiramente até à crista da ilha e começo a descer agora para a encosta sul. S. Jorge tem cerca de 55 quilómetros de extensão mas não tem mais do que 7 ou 8 de largura, pelo que não sendo possível percorrê-la sempre pela linha de cumeada passamos o tempo a oscilar entre as abruptas encostas norte e sul. Apanho rede. Numa ligação entrecortada e que caiu uma meia dúzia de vezes consigo confirmar que o Jaime percebeu as palavras “estou bem, vou até ao fim”. “Ok. Percebi. Força”, retorquiu. Não mais teria rede.

Agora desço a bom ritmo e ganho novo ânimo. Recupero forças. Avisto uma esplanada. Solto uma gargalhada e acelero ainda mais. Já sonho com esta paragem técnica. Terão sandes de presunto? Como um chocolate, bebo uma cola e compro uma garrafa de litro e meio de água, penso. FECHADO. REABRIMOS ÀS 14:30 …

O desalento é total. Grito quantos palavrões me vêem à cabeça. Insulto os açorianos. É 1:30h, pelo que até valeria a pena esperar uma hora, mas uma semana nesta ilha já deu para perceber o que vale o aviso: nada! Gente afável, acolhedora e simpática de quem é impossível não se gostar, mas trabalhar é uma outra história. Os subsídios vão dando para cerveja e cigarros e até para rações para o gado, como se a ilha não estivesse forrada a pasto!

A irritação dá-me para estugar a passada e continuo a descer. Descer de mais. Começo a ficar preocupado. Tudo o que desce tem que subir. Mais um aglomerado de casas. Nem vivalma. Hesito em bater a uma porta para pedir água. Decido fazê-lo na próxima casa.

Decisão errada. Não fazia ideia do que me esperava. Termina a descida e terminam as casas. Mais de 5 horas de esforço e começa a subida. O gps apita: 42 km. “Rica maratona”. Agora caminho, exausto. Alimento-me de amoras na beira da estrada. Menos de 200ml de água. Vou dando goles minúsculos. Continuo a subir. A pique. Uma fonte! Seca! Mais amoras. Entro na nuvem. O que me vale é a humidade que normalmente ronda os 95% e que contribui assim para a minha hidratação. Um regato de cor amarelada. Desço o barranco, descalço-me e mergulho as pernas. A cor e o cheiro da água desaconselham-me de aí molhar o boné.

De volta ao alcatrão, que jamais abandonaria, confirmo mais uma opção errada: optei por sapatilhas de trail, mas nas últimas 2 horas não havia saído da estrada e a previsão era a de que essa situação se mantivesse até ao final. Outra fonte seca. Faz sentido, estou na zona da Ribeira Seca! Poupo-vos ao meu desespero: 12 quilómetros a subir da cota 250 para a 750, dentro da nuvem, sem água e sem comida. Algures a meio da subida ingeri o 3º gel. De 10 em 10 minutos passa um carro com luzes de nevoeiro acesas.

O desnível começa a atenuar-se. Desarrolho um dos bidons para tentar escorrer algum vestígio de líquido que ainda por lá pudesse estar. Sento-me numa pedra com a cabeça entre os joelhos. Vêem-me as lágrimas aos olhos. Não há água, não há rede de telemóvel, mas agora só pode ser a descer e daqui a uns 3 ou 4 quilómetros há uma povoação.

Levanto-me resignado. Começa a descida. Corro. As pernas respondem e vou acelerando o ritmo. Ganho ânimo. Os minutos passam. Estive aqui há uns dias e sei que haverá casas mais tarde ou mais cedo. Foram 20 minutos feitos a um ritmo impensável, mas ao fim de 58 quilómetros e quase 8 horas de esforço vejo um oásis: uma casa. Bato. Cães ladram. Chamo. Cães ladram. Contorno a casa. Os cães estão presos. Encontro uma torneira. Não consigo esperar que o bidon esteja cheio. Num momento coloco-o debaixo da torneira e no momento seguinte já estou a verter pela garganta abaixo. Metade escorre-me pelo peito até aos pés. Acabou. Encho e volto a despejar pela garganta.

Encho ambos os bidons até cima. Ingiro o 4º gel e, com um sorriso de orelha a orelha ponho-me a caminho. Apesar de ainda me restar mais de uma hora de esforço, sei que a aventura está terminada e que chegarei ao extremo oriental da ilha nem que seja a rebolar. Percorro cerca de um quilómetro e, ironia do destino, deparo-me com um café aberto.

Entro e, de imediato, o enorme borburinho que se ouvia pára instantaneamente como se alguém houvesse carregado num interruptor mágico. Peço um chocolate, um pacote de batatas fritas e uma cerveja. Pago e saio para a esplanada. Um a um todos os ocupantes do café assomam à porta para tirar a pinta ao extraterrestre. A verdade é que não vi uma única pessoa a correr, nem sequer uma única bicicleta, nas duas semanas que passei nos Açores.

Mudei recentemente, e pela primeira vez, de rede telemóvel, porque me foi apresentado um pacote altamente vantajoso. O que o vendedor se esqueceu de me dizer, e é o melhor dos motivos para aderirmos à rede Optimus, é que pelo facto de nunca haver rede não conseguiremos fazer metade das chamadas que pretendemos, o que se traduz numa inegável poupança.

À vista do quartel dos bombeiros dirigi-me ao mesmo para solicitar que me deixassem fazer uma chamada para as Velas, para que me viessem buscar. O responsável da Protecção Civil estava incrédulo que eu tivesse vindo “de tão longe de bicicleta”. Quando o esclareci acerca da aventura que estava prestes a concluir, soltou um impropério nada condizente quer com a farda que garbosamente envergava quer com a prática dos açorianos, gente de quem é raro ouvir-se um palavrão.
Acabo as minhas reflexões, continuando a contemplar o ilhéu do Topo, e sento-me agora de cerveja na mão, mas não tenho tempo de a levar aos lábios, pois família e amigos acabam de chegar para me resgatar. Abraços e felicitações e sentamo-nos todos de cerveja na mão e olhar no horizonte a apreciar a sorte que temos em estarmos aqui todos a desfrutar do que a vida nos oferece.