quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

III Trilho dos Abutres – que faço eu aqui?

Ouço a lenha a crepitar e sinto o confortável calor emanado a curta distância, ainda assim baixo os olhos e confirmo que não tenho os pés mergulhados numa bacia com água. Levanto os olhos e concentro-me novamente no assunto em debate. De passagem deito um olhar ao chouriço que continua a assar demoradamente, indiferente ao que se passa à sua volta.
 
Acarinho cuidadosa e demoradamente o copo de maduro tinto com a calma e o zelo com que se embala um recém-nascido.
 
Não obstante a tertúlia ir correndo de forma prazenteira e interessante debato-me constantemente com a torrente de imagens que insiste em suceder-se abruptamente à frente dos meus olhos. Enquanto perscruto o horizonte em busca de uma fita branca quase embato com a cabeça num tronco que se atravessa ao nível dos olhos. Ouço o meu próprio ofegar, enfio os pés na lama. Olho para debaixo da mesa e confirmo que não os tenho enfiados numa bacia de água.
 
Desperto lentamente deste torpor. Ouço agora o Pedro Amorim que nos fala da Badwater, da Comrades, do Carlos Sá e do Aconcágua. Vejo as minhas mãos enlameadas enfiadas numa taça de batatas fritas, vejo o desespero da Célia Azenha ao descobrir a avaria no seu frontal. Subitamente, um arrepio, só pode ser de emoção.
 
Intervém agora o Jorge Serrazina, com aquele inconfundível sorriso que inspira a maior das calmas deste mundo, mas eu já não o ouço porque me passa agora diante dos olhos uma sucessão interminável de imagens desordenadas. Montanhas, vales, penedos, rio, árvores, luz, breu, mais penedos, mais água, subidas intermináveis, trilhos, musgo e verde, muito verde, e castanho, muito castanho.
 
Sobressalto-me com uma gargalhada colectiva que percebo remotamente ter sido provocada por um comentário jocoso do Vitor Dias. Volto a concentrar-me no presente e ouço a Susana descrever pormenores da maratona des Sables e das suas aventuras nos Pirenéus. Tento imaginar-me lá e logo sou transportado para Gondramaz. Vejo desfiar pelo meu cérebro uma sucessão interminável de fotogramas aparentemente sem sequência lógica: tão depressa estou a olhar para o chão e a ver as minhas sapatilhas enterradas na lama, como no momento seguinte alargo a vista ao horizonte e absorvo a magnífica envolvente da serra, que imediatamente é substituída por um tronco atravessado a 10 cm dos meus olhos (outra vez este tronco?!), trilhos, água, musgo, penedos, subidas intermináveis, mochilas, cabos, fitas brancas, árvores, descidas impossíveis, conversas, e rostos, muitos, uns conhecidos e outros que passaram a sê-lo.
 
Olho para debaixo da mesa e, não, não tenho os pés enfiados dentro de uma bacia de água. Levanto os olhos. A Glória Serrazina debate-se desesperadamente com Hipnos e Morfeu, que em conjunto a tentam convocar. O murmúrio de vozes à minha volta parece distante e não consegue arrancar-me a esta letargia.
 
De repente toda a gente se levanta. Olho para o relógio: uma da manhã. Mexo cerimoniosamente o corpo, dorido de um interminável esforço ininterrupto de mais de 10 horas. Levanto-me com cuidado para não entornar a bacia de água onde tenho mergulhados os pés. Entre abraços, agradecimentos aos inefáveis companheiros que desde há meses trabalham para que esta tenha sido para todos nós uma aventura inesquecível, promessas de regresso e de amizade eterna surge o Telmo com um cabaz repleto de fumeiros, broa e maduro da região. Afinal a festa prolongou-se até às 3 da matina, uma vez que não é possível prolonga-la até Janeiro de 2014.
 
Desta vez fico em pé; não quero arriscar a inadvertidamente enfiar os pés na tal bacia de água gelada.