segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Longa vida ao Salgueiros


Deixo-vos um curto registo daquilo que foram as minhas emoções inerentes à 12ª participação naquela que considero a prova Rainha desta distância, no calendário nacional. Na realidade, correr 10km constitui, para mim, uma prova de velocidade: são 10 séries de 1000m sem intervalo entre elas. As únicas séries que faço durante todo o ano, diga-se em abono da verdade.


Chego tarde, parto tarde e tento serpentear por entre uma floresta de pernas enquanto vou revivendo a minha primeira participação, em 2000, no ano em que me estreei nestas lides. Salto para o ano de 2005, quando convenci dois dos meus irmãos a fazerem-me companhia e recordo como durante a prova, e para evitar a desistência de um deles ao fim do primeiro quilómetro, rolei a 6:15min/km até ao fim. Estou agora no ano de 2008 em que bati o meu recorde da prova, com uns modestos 42:47. Salto para 2009, quando, poucos meses antes desta prova, o Salgueiros foi buscar o meu miúdo a um torneio de futebol de rua, o recebeu de braços abertos, lhe deu estatuto titular, e de como passados dois meses, e não resistindo a um assédio de um clube dito maior, os deixei sem guarda-redes a uma semana do início do campeonato. Uma vez mais confesso com mágoa esta pedra no sapato. A emoção deste ano foi bem mais prosaica: dei um malho de mota ao sair de casa e cheguei à prova em cima da hora e com um joelho a sangrar e a latejar. Rumei de imediato à meta e fiz o que pude: 43:59.


Este ano arredaram-nos do Vidal Pinheiro, mas eu fiz questão de lá passar no final da prova. É impossível olhar aquele cenário de cidade bombardeada sem nos emocionarmos. O futebol do Salgueiros vai treinando um pouco por toda a cidade, pagando sempre o aluguer dos campos, mesmo os municipais. Como contraste, temos o maior clube da cidade a treinar por 500€ por mês num centro de estágios construído especialmente para si por um demagogo autarca que geria um município que fica do outro lado do rio Douro. Sim, pode gostar-se de atletismo e de futebol, mas seria interessante se este último se auto-sustentasse. O escandaloso é que os dinheiros públicos continuam a ser usados para ajudar a bola, e ainda por cima só os clubes mais poderosos. Uma vergonha.


Voltemos às sapatilhas: enquanto conseguir colocar uma perna à frente da outra lá estarei todos os 8 de Dezembro à partida para mais uma festa da mais antiga prova de atletismo do país.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Crónica voluntária

Enquanto organizador do evento 24 h Portugal recebi, como cortesia por parte de um dos nossos patrocinadores – a marca Skechers, um par de sapatilhas idêntico ao que ofertou aos vencedores masculino e feminino da referida prova.

Apesar de ser fiel a um modelo de uma outra marca, aprendi há muitos anos no Brasil o adágio “é de borla, dá até na veia”, pelo que resolvi experimentar as ditas sapatilhas, embora reconhecendo que parti com algumas reservas mentais, fruto do preconceito que advinha do facto de serem uma marca de baixo custo, quando comparada com as de maior implantação no mercado da corrida.

Todavia, as primeiras impressões – e bem sabemos que não há uma segunda oportunidade para uma primeira impressão – foram excelentes: uma sapatilha levíssima e confortável, com uma sola de espuma que garante um amortecimento irrepreensível, sem que no entanto tenha um comportamento demasiado plástico. Pelo contrário, a sua elasticidade permite um arranque rápido da passada, tornando-as velozes, para quem tiver pernas.

Após uma dezena de treinos e cerca de 150km corridos, resolvi arriscar e, pela primeira vez em muitos anos, fazer uma maratona de estrada com um modelo de pisada neutra (sou pronador) e com o qual nunca tinha corrido mais de 18km seguidos. Levei então as minhas GoRunUltra à Maratona de Amsterdão, no dia 19 de Outubro. A melhor prova de que se comportaram de forma irrepreensível, foi calça-las novamente para correr a Maratona do Porto, apenas duas semanas mais tarde. Impecáveis!

Há, no entanto, uma nota nada abonatória, que é o facto de, apenas com 250km de uso, apresentarem já um desgaste de sola muito considerável.

Bem sei que é habitual que atletas patrocinados queiram retribuir a cortesia das marcas, apressando-se a escrever algumas linhas, regra geral tão evidentes quanto infrutíferas no resultado que pretendem alcançar. No entanto, no presente caso, a relação contratual com a Skechers está encerrada, sendo que o que me moveu para escrever esta review informal foi mesmo o enorme conforto que representa correr com as minhas GoRunUltra e o quão contente estou com elas.



domingo, 29 de junho de 2014

Amigos do Timóteo


São quase 3 da matina e neste momento a minha luta é apenas uma: a de combater as pálpebras que insistem em fechar.

Ligo o pc e vou navegando sem destino e sem qualquer esperança de que alguém tenha já publicado o que quer que seja acerca do UTSF. A única intenção é mesmo a de me manter acordado, pois não quero correr o risco de adormecer com o pé enrolado em gelo.

Olho para o monitor, mas não vejo nada. Na verdade vejo o filme do dia a passar-me diante dos olhos. O amanhecer debaixo de uma chuvinha irritante e a rápida descida até ao rio.

Sinto a chuva a penetrar-me até aos ossos e logo em seguida o sol a incomodar-me na nuca.

Oiço riso e gargalhadas entrecortadas por protestos vindos não sei bem de onde.

Vejo-me submerso até à cintura. Levanto os olhos e vejo a serra, o céu pesado. Regresso aos penedos e vejo um companheiro que se estatela de uma altura de quase 2 metros em cima de uma laje e que berra como um condenado.

Pergunto-me o que faço eu aqui.

Vejo um punhado de sorrisos em rostos que olham na minha direcção e oiço palavras de ânimo e incentivo. Estou num qualquer abastecimento rodeado de companheiros incansáveis que hoje trocaram os trilhos pela solidariedade.

Estou de novo no trilho e vou subindo penosamente, para logo em seguida descer com dificuldade, escorregar ao longo de um penedo, raspar um braço num silvado, bater com uma canela num xisto pontiagudo ou a cabeça num troco atravessado ao nível dos olhos mas que não vi, fruto da reflexão do momento: a noite mal dormida, o abastecimento que não chega, a Besta que vai ter de ser vencida com bastões a atrapalharem, o relógio que não pára, a perna direita que já não dobra … o desânimo prestes a apoderar-se de mim e a Patrícia a vir uma vez mais em meu socorro. A minha incansável companheira de jornada, que, do primeiro ao último metro desta aventura, me aturou protestos, blasfémias e amuos; puxando constantemente por mim.

Subimos ravinas intermináveis e descemos vales sem fim. Caminhamos em leitos de rios, mudando incessantemente de margem, enchendo os cantis na mesma água onde mergulhávamos o corpo, tentando usufruir de tudo o que a Freita tem para oferecer a quem se aventura pelas suas entranhas.

Recordo-me de sentir o meu próprio sorriso a tocar-me nas orelhas quando no abastecimento dos 60km retiro o cronógrafo da mochila e verifico que estamos com 14 horas de prova. Faltava a subida da Lomba e toda a Mizarela – que provavelmente seria já vencida de noite, mas mesmo com as dores do pé, que me incapacitavam desde as 11 horas de prova, eu tinha a certeza de que a aventura teria final feliz.

Por falar em pé; é melhor desentrapá-lo e ir dormir.

Obrigado Patrícia.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

7 da matina em Portugal continental e em Gondramaz ...


... passeio-me em silêncio pelo meio da nuvem que ontem desceu para nos cumprimentar e que por aqui foi ficando. Desço a Rua da Picada, que ontem à tarde atravessei correndo por volta do km 38, e verifico que as fitas de balizagem ainda por aqui se mantêm, bailando indolentemente ao ritmo da ligeiríssima brisa que se faz sentir.

Decido regressar ao magnífico campo base que nos proporcionou a organização abútrica e onde os meus companheiros de jornada ainda dormem, após ontem, ou antes hoje, nos termos deitado já bem para lá das 2h da madrugada, no regresso da Loja do Sr. Falcão, onde marcamos presença em mais um tertúlia dedicada ao Trail, este ano tendo tido para mim o significado especial de ter participado na qualidade de orador convidado.

Quando, no último quartel do séc. XIX, o insigne matemático e astrónomo José Falcão ali – naquela casa onde nasceu e onde a sua família desde 1878 mantém o negócio de mercearia, fazendas, vinhos e miudezas – se reunia com os seus correligionários republicanos, estaria longe de imaginar que no dealbar do séc. XXI não só a loja ainda existiria, mas mais do que isso: que ela continuaria a ser um privilegiado local de debate de ideias.

A tertúlia da véspera havia sido longa e prazenteira e ter-se-ia estendido ainda mais pela noite dentro não fora o cansaço espelhado nos muitos rostos que compareceram ao prolongar desta festa que havia começado ainda de madrugada e que nos tinha levado a todos a percorrer os magníficos e invariavelmente enlameados trilhos da Serra da Lousã.

Recordo, com uma gargalhada, a fila de “atletas” que junto ao primeiro abastecimento aguardava pacientemente a sua vez de lavar as sapatilhas, olhando para mim com desdém, como se fosse eu o extraterrestre, quando me dirigi àquele cómico grupo assegurando-lhes que haveria seguramente melhores formas de gastar água pois que era seguro que a lama os acompanharia até ao último km de prova.

De regresso ao refúgio, deito-me novamente na cama e cerro os olhos, mas não sou já capaz de adormecer, o que não me impede de ver desfiar diante dos meus olhos uma sucessão de imagens dignas de um sonho: a permanente bruma da serra conferindo-lhe uma atmosfera misteriosa de romance de Lancelyn Green; as conversas em surdina entrecortadas por um impropério soltado por um qualquer companheiro de aventura que acabara de embater com a cabeça num ramo, um joelho num penedo, que calculara mal a profundidade do lameiro e se enterrara até aos joelhos, ou que acabara de fazer sku só terminando de encontro a uma árvore; os permanentes atravessamentos de regatos através de frágeis e traiçoeiras pontes que não passavam de um par de troncos cobertos de musgo e lama, a opção da travessia pela água para obviar perigos e lavar sapatilhas; a visão longínqua de meia dúzia de ruínas a despontar da neblina, que regra geral significavam a existência de um abastecimento, onde se parava um pouco e finalmente se conseguia olhar o rosto dos companheiros com quem vínhamos partilhando aventuras havia horas, mas cuja dureza e perigosidade do terreno que nos obrigava a concentração permanente nos impedia de às diferentes vozes associar um olhar. As castanhas mãos lamacentas enfiadas numa qualquer taça de batatas fritas ou amendoins, a ínfima simpatia espelhada nos enregelados voluntários que de sorriso rasgado não poupavam nas palavras de ânimo enquanto nos iam enchendo os cantis ou nos iam servindo chá ou sopa, e os cúmplices trocares de olhares entre recém-adquiridos companheiros de aventura, que, dispensando palavras, confirmavam estarmos prontos para nos lançarmos de novo em busca de algo que nunca vou sequer tentar explicar, pois mesmo que viesse um dia a conseguir colocar em palavras, nunca seriam entendidas por quem nunca se lançou por estas serras acima e abaixo em perfeita comunhão com aquilo que de melhor e de menos simpático a natureza tem para connosco partilhar. Seria pois um esforço vão.

Sinto agora alguma agitação e aos poucos vou saindo deste torpor. É hora de rumarmos à Quinta da Paiva, junto ao Parque Biológico, para o corta-mato dos mais novos, e onde não podemos deixar de marcar presença, testemunhando o excelente trabalho que o nosso amigo João Lamas e restante Associação Abútrica têm feito, com a escolinha de trail e corrida.

Resta-me agradecer, uma vez mais, à Associação Abútrica o convite, garantindo-lhes que não se verão livres de mim: em 2015 estarei em Miranda do Corvo para a minha 4ª participação consecutiva no Trilho dos Abutres.

É claro que o fim-de-semana se tornou perfeito devido à companhia dos inestimáveis amigos Rui Pinho, José Moutinho, Carlos Madureira, Ramiro Alvarez e, propositadamente em último, a primeiríssima Flor Madureira, grande vencedora do escalão F45.

domingo, 15 de dezembro de 2013

Até já


Quatro anos volvidos sobre esse duplamente memorável domingo de Outubro de 2009, em que pela primeira vez corri pela equipa Porto Runners e em que baixei dos 43 minutos nos 10km, é chegada a hora de agradecer a todos quantos ao longo destes quatro anos me acolheram nessa grandiosa agremiação que dá pelo nome de Porto Runners – Clube de Corrida.

Com aquela camisola registei memoráveis momentos, como sejam uma maratona corrida nos antípodas, a minha estreia no trail, ou as inúmeras excursões desportivo-gastronómico-culturais nas quais, com amigos do nosso e de outros clubes, participei no mais variado tipo de provas em diferentes cantos deste país; não esquecendo ainda um punhado de incursões além fronteira para correr outras tantas maratonas.

Trata-se de um clube competentemente presidido pelo Fernando Leite, a quem deixo uma palavra especial de agradecimento, e que, diga-se em abono da verdade, cumpre plenamente os objectivos inscritos no regulamento interno, dos quais destaco o da promoção da corrida enquanto parte de um estilo de vida saudável, fisicamente activo e mentalmente são.

Todavia, um clube único no panorama nacional, uma referência incontornável do maratonismo amador, com cerca de 300 associados e perto de duas centenas de maratonistas, e que pode, sem qualquer favor, ser mesmo considerado um caso de estudo, tem já a responsabilidade de ser muito mais do que apenas um grupo de amigos que se junta para correr.

Um clube que tem, entre os seus associados, profissionais das mais variadíssimas áreas, que possui know-how, orçamento e dimensão consideráveis poderia e deveria apresentar um conjunto de iniciativas que tornassem o clube mais atractivo para os seus associados. Se calhar o problema reside em mim, que à medida que vou ficando cada vez mais veterano gosto de acreditar que me vou tornando mais tolerante mas, paradoxalmente, vejo-me mais inflexível. Creio, todavia, que apenas exijo a cada um de acordo com as suas capacidades.

Na verdade, desde a primeira hora que registei o orgulho de fazer parte deste grupo de amigos como única vantagem em pertencer aos PR, porquanto a minha logística profissional e familiar não me permite integrar os treinos dos PR – quer se trate dos regulares quer dos extraordinários, que por azar meu, normalmente coincidem com alguma prova no Grande Porto.

Como toda a gente, tenho os meus gostos pessoais, as minhas crenças e as minhas ideologias; que vivo por vezes de forma enérgica, mas que necessitam ser manifestamente intensas para me fazerem militar numa qualquer fileira. 

Saio apenas de associado, agradecendo tudo aquilo que os Porto Runners me proporcionaram, mas não vou a lado nenhum; estarei sempre por aqui ... a correr ao vosso lado.


If a plant cannot live according to its nature, it dies; and so a man.
Henry David Thoreau

sábado, 7 de dezembro de 2013

Histeria colectiva


Acordo cedo. Muito cedo. Demasiadamente cedo, para um sábado. Abro, a custo, os olhos e mantenho-os semi-cerrados. Na realidade, e como é habitual, abro apenas o esquerdo; porque, também como é costume, acordo virado para a janela.

Apercebo-me que a persiana não ficou completamente fechada. Verifico isso porque há uma fina lâmina de sol que persiste em penetrar por entre duas réguas.

Sol? Aí está o incentivo que me faltava. Arrasto-me até à sala – que dorme sempre de persianas abertas – e confirmo a sua presença. Não há nada como uma fria mas soalheira manhã de Outono. Afasto as cortinas enquanto simultaneamente fecho os olhos e abro os braços. Assim permaneço, a usufruir deste privilégio matinal, durante aqueles dois ou três minutos que se transformam em eternidade.

Abro contrariada e lentamente os olhos. Grande algazarra ali adiante. Não, não são apenas a habituais e odiosas gaivotas. Há silhuetas, voos e bateres de asas bastante diferenciados. Garças já por aqui andam há umas semanas, e aqueles voos paralelos ao espelho de água são típicos dos patos – mais raros mas também usuais nesta época. Há, no entanto, ali algo que eu nunca vi por estas bandas: permanecem calmamente à superfície, aparentemente em inocente repouso até que, repentinamente, mergulham e desaparecem durante largos segundos. Já vi patos fazerem isto. Mas não permanecem tanto tempo submersos nem tem o pescoço tão comprido.

Corro à casa de banho e mergulho a cara em água fresca. Regresso à janela já munido de binóculos. Gansos! São gansos! Nunca os tinha visto por aqui.

Lá estão as garças no seu voo simultaneamente desengonçado e majestoso, sobrevoando tudo e todos, com a calma de quem todo um dia tem pela frente. Os patos, que ora voam, ora aterram planando na superfície de água mergulhando durante muito breves instantes. E ainda as gaivotas: aquelas ratazanas voadoras, como muito bem Sepúlveda lhes chamou um dia, com um voo pouco gracioso e uma postura parasita.

A grande novidade é a presença dos gansos. Que sorte! Que privilégio! Ao fim de alguns minutos vejo emergir um deles com um peixe na boca.

A vida pode, afinal, ser bela. Muito bela. No meio deste raro despertar assalta-me repentinamente o h5enenãoseidasquantas. Será que houve alteração das rotas migratórias? Bolas! Odeio fazedores de notícias!

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A ASAE ainda não se pronunciou ...



Espontaneidade. Por força da sua raiz etimológica a espontaneidade exprime, antes de mais, a qualidade ou carácter do agente que opera por sua própria iniciativa, e não como resposta directa a uma incitação vinda de fora. Espontâneo será, pois, o que não foi provocado…”
[Grande Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura]

Muito se tem falado acerca da perigosidade intrínseca às provas de trail e à segurança, ou falta dela, e da necessidade de as entidades organizadoras deste tipo de eventos apostarem cada vez mais neste aspecto. É, aliás, lugar-comum ouvir-se algo como “um dia vai morrer alguém em prova e a partir desse dia as coisas irão mudar”.

Todavia, é igualmente generalizada a opinião de que cabe ao atleta a responsabilidade primeira pela sua própria segurança. Motivo pelo qual muitos seremos aqueles que concordamos com acções prévias a cada prova que visem consciencializar cada um de nós para este problema sério.

 Fazer o participante reflectir sobre a sua condição física e ainda acerca de pontos tão distintos quanto o tipo de terreno, eventuais condições atmosféricas ou equipamento necessário, através da assinatura de um documento em que aquele assegura possuir robustez física e estar consciente da aventura em que se vai meter, pode parecer-me algo exagerado, mas aceito sem discussão.

Outra coisa completamente diferente é, a duas semanas do início da prova, pretender a organização de um evento, através da paradoxal assinatura forçada de uma declaração de espontaneidade, de legalidade duvidosa e que não constava do regulamento da prova aquando da inscrição e pagamento da mesma, passar o ónus de qualquer fatalidade que possa ocorrer para o participante, desobrigando-se a mesma de fazer face a qualquer tipo de despesa, porquanto o participante “assume, em carácter exclusivo e excludente, as consequências que possam advir de qualquer tipo de contingência ...” e por aí fora, incluindo falecimento e só faltando mesmo obrigar o participante a lavrar um pedido de desculpas pelos transtornos causados na eventualidade de uma fatalidade.

O que mais me entristece é que este “documento” tenha sido concebido no seio de uma organização liderada por alguém por todos nós muito estimado, e não apenas enquanto atleta, e que mais do que ninguém sofre na pele as agruras deste tipo de provas.

Acresce que especificamente nesta prova era mais do que desnecessária uma atitude destas, haja em vista tratar-se da prova de trail onde me sinto mais acompanhado em termos de segurança. É, aliás, a prova que melhor classificaria, na generalidade, mas é sobre segurança que agora escrevo … e sobre desresponsabilização, já agora … e de lavagem de mãos … e de desapontamento … grande, muito grande …

Espontaneidade foi o que me fez ir ao aeroporto de Pedras Rubras receber o Carlos Sá, quando brilhantemente ganhou a Badwater, e que me fará lá voltar para o aclamar, a ele a outros que continuam a receber o meu respeito e admiração.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

O Carlos Sá não é a Popota



A televisão, a televisão, a televisão …

Qual é o vosso fetiche com a televisão?!

Deixem lá a televisão!

Neste desporto dispomos de um privilégio ímpar que é o da possibilidade de convívio com atletas de topo, que treinam nos mesmos locais que nós e com quem facilmente chegamos à fala, trocamos impressões, pedimos conselhos, escutamos relatos, partilhamos emoções.

A nossa participação em provas em que os mesmos estão presentes, misturando-se profissionais com amadores e mesmo com “aprendizes de feiticeiro” é seguramente um factor de motivação, dificilmente ao alcance da esmagadora maioria dos desportos.

Todos nós sabemos dar o devido valor ao Carlos Sá e a tantos outros, e seguramente que os enche também de orgulho e alegria saber que são acarinhados pelos seus pares.

O que procuram quando se lançam nestas aventuras que nos alimentam o imaginário só eles poderão responder, mas atrevo-me a arriscar que buscam sobretudo emoções. Não é seguramente essa tal de fama que os move.

Não ignoro que o destaque nos meios de comunicação é muito importante para que o Carlos obtenha os indispensáveis patrocínios, mas depois de mais este feito estou certo de que não lhe faltarão.
Quanto à tv, mantenham-na desligada que é a melhor atitude que podemos ter em prol da nossa sanidade mental.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

UTSF 2013 - antes quebrar que torcer



Deito-me cerimoniosamente num banco de jardim à sombra de um carvalho, enquanto que, de olhos semicerrados, vejo passar diante de mim uma sequência desorganizada de imagens que se vão sucedendo de forma torrencial e aparentemente desordenada, como que peças de um puzzle que não sei ainda se vai ser montado.

Num momento estou tranquilamente sentado num ramo de uma árvore, em plena Besta a hidratar e a recuperar forças, convocando todos os sentidos para absorver a imponência desta íngreme escombreira vomitada das entranhas da serra, enquanto vou perscrutando o horizonte em busca do caminho até então percorrido, e no instante seguinte vejo-me já a escorregar um qualquer penedo do rio Paivô, com o consequente mergulho naquelas cristalinas águas.

Recordo como às três e meia da manhã não conseguia pregar olho. À ansiedade própria do momento veio juntar-se o vento, que ao abanar aqueles carvalhos e araucárias que circundavam a nossa frágil tenda parecia agarrar-me pelos ombros enquanto me abanava e ia perguntando se tinha bem a certeza de me querer uma vez mais lançar nesta brutal aventura.

O facto de ter calor em calções e t-shirt, deitado por cima do saco-cama em plena serra da Freita àquela hora da manhã era já um prenúncio do que nos esperaria.

Levantara-me para passar alguma água pelo rosto e acabei por tomar um duche. Deambulei pelo parque, iluminado por um magnífico luar, enquanto fui observando a enérgica porém silenciosa azáfama em que a vasta equipa da organização se desdobrava para que nada falhasse na hora do tiro de partida.

Recordo os primeiros quilómetros percorridos a ritmo controlado, contrastando com a impaciência de atletas mais jovens que se lançavam furiosamente pelas ladeiras abaixo e que invariavelmente ultrapassávamos nas subidas, para logo em seguida se repetir a mesma sequência.

Vou recordando rostos e conversas. O João, o Luis, o Pedro, o Joaquim e tantos outros com quem fomos traçando a rota que nos trouxe até este quilómetro cinquenta. Uma vez mais me interrogo por onde andará o Carlos, esse amigo tão recente mas que ocupa já um lugar tão importante na minha vida como se o conhecesse desde sempre.

De forma entrecortada vou ouvindo vozes e pedaços soltos de conversas: um atleta que está a soro, um outro que teve um ataque de pânico, um que torceu o joelho, muitos desidratados. Ouço os motores das carrinhas que vão chegando vazias e partindo repletas de atletas que não resistem às agruras da serra nem às condições meteorológicas.

Ainda não sei como vou sair daqui, mas sei que vou sair acompanhado. Até aos 40 quilómetros o Rui havia discretamente moderado o seu ritmo para que eu o pudesse acompanhar e não seria agora que o duo se iria desfazer.

Ouço finalmente a sua voz, o que é um bom augúrio, pois a saída da Besta para um planalto árido e nu como um joelho, em pleno pico de calor e onde não corria uma brisa, atirou-nos para um estado tal de fraqueza que cheguei a temer a desistência. À chegada aqui, o Rui sentara-se à sombra a comer e a beber, tentando recuperar forças.

Reconheço também a voz do Luis, do Fernando e da esposa e até a do Sr. António do Alfaiate, para além de muitas outras desconhecidas, mas a do Rui sobressai. Ele ainda não sabe, mas eu tenho já a certeza de que a prova, para nós, está prestes a ser retomada. Ergo-me lentamente, recoloco a mochila, pego nos bastões e pergunto ao Rui se vai passar o resto do dia na conversa, mas quando dou por mim já ele está novamente a rebocar-me.

O lugar-comum que atesta poder a cabeça mais do que as pernas aplica-se na perfeição àquilo que foi a minha prova entre os quilómetros 50 e 60, e que se pode resumir na capacidade de deixar bem claro ao corpo que quem manda é a cabeça e que em momento algum vai haver negociação. Com a boca como única aliada do cérebro, mereço a partir daqui o epíteto de Rezingão com que o Rui me crismou.

Mais rio, mais subidas a pique e descidas infernais. Uma e outra vez a sensação de que nada mais importa do que colocar um pé à frente do outro e de que cada passada conseguida é uma importante batalha vencida rumo a um objectivo que irá inevitavelmente ser cumprido.

A chegada à Lomba é um momento épico, em que somos saudados como heróis, como se a prova estivesse concluída e não tivéssemos ainda 10 brutais quilómetros pela frente. Companheiros que nos retiram as mochilas dos ombros, nos enchem os bidons e nos preparam os frontais que iremos precisar daquele ponto em diante, nos colocam tijelas de sopa nas mãos e as recolhem mal acabamos de sorver para logo nos entregarem uma bifana e uma cerveja já aberta. Gente boa, muito boa, ao longo de toda a prova. Uma organização inexcedível, composta por atletas e seus familiares, que sabem como ninguém a importância destes gestos e atitudes. Rostos que jamais esquecerei.

Dali em diante a progressão fazia-se de noite, com a dificuldade acrescida de só dispormos de uma hora até ao controlo da Castanheira. Alcançamos e Célia Azenha e agora como trio dispusemo-nos a chegar ao Merujal, mas estávamos longe de imaginar as peripécias que nos esperavam. Num ponto em que o trilho atravessa a estrada aparece um carro da organização e pelo rádio ouvia-se claramente a voz do director da prova dizendo que acabava de barrar o caminho a dois atletas. Não nos resignamos e continuamos, agora pela estrada, para logo adiante nos embrenharmos em busca do trilho, mas onde haveríamos de nos perder e fazer várias tentativas de incursão pelo meio de mato alto. Numa altura em que a Célia estava já sem frontal conseguimos, numa das nossas incursões exploratórias, entroncar no PR7, cujo troço final percorremos em direcção à meta, onde chegamos 19 horas após termos partido, com bem mais de 70 quilómetros, exaustos, sujos e arranhados mas com um indisfarçável sorriso nos lábios.

Quanto ao Rui, confirmo a certeza de que nos vamos aturar até sermos velhinhos.