quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Qualquer semelhança entre o seguinte relato e a realidade (não) é pura coincidência


Desde os tempos da escola primária, quando eram companheiros de carteira, que o João não sabe o que é feito de Clarisse. Curiosamente até moram a cerca de um quilómetro de distância, mas a rotina diária leva-os em sentidos diferentes: ambos são funcionários administrativos, João na Câmara Municipal de Estarreja e Clarisse na Câmara Municipal de Ovar.

Todos os dias, quando sai do emprego, João gosta de ir ao café do Arnaldo, beber umas cervejas com os amigos e falar acerca das últimas da bola. Quando chega a casa costuma encontrar os filhos pequenos a brincar, já com os banhos tomados e os trabalhos de casa feitos, e a mulher na cozinha a acabar o jantar. Faz um zapping à procura de bola, enquanto janta, normalmente em silêncio, só interrompido por uns impropérios que lança quando aparecem na televisão imagens de um clube que não o seu ou de uma cara que lhe soa vagamente a político. Sabe-lhe bem fumar um cigarro ainda sentado à mesa, que invariavelmente apaga nos restos que ficam no prato, antes de se levantar para ir novamente ao café.

Quando chega, já os filhos estão deitados e a mulher encontra-se a passar a ferro enquanto vai adiantando o almoço do dia seguinte para levar para a fábrica. João senta-se então ao computador onde procura mais amigos nas redes sociais. Esta semana tem-se fartado de escrever acerca da miséria que são os atletas portugueses nos Jogos Olímpicos, essa cambada de merdosos que nem uma medalha trazem! A gastarem o nosso dinheiro pra irem passear! E os amigos liquem bastante, e acrescentam insultos e injúrias, e aquele post já vai assim bem alimentado há uns 5 ou 6 dias. Nunca tinha tido tantos liques nem comentários.

A esta hora também Clarisse está ao computador. Envia mensagens a amigos e família. Como está longe de casa não cumpre a habitual rotina diária que, a esta hora, faria com que estivesse ainda nas lides domésticas. Esta semana é diferente. Nesta semana não se levantou diariamente às 7 da manhã para ir treinar debaixo de chuva nem correu para o estádio no final de um dia de trabalho para cumprir o programa bidiário de treinos, debaixo de um sol arrasador. Esta semana Clarisse caiu durante uma prova que liderava, levantou-se e conseguiu terminá-la, baixando o recorde Nacional dos 3000m barreiras, que aliás já lhe pertencia, e apurar-se para a final. Clarisse é a melhor atleta portuguesa naquela modalidade, tendo sido Campeã Nacional por 5 vezes, pelo que, apesar de ser atleta amadora, tem um contrato com um clube nacional com pergaminhos no Atletismo, que lhe fornece equipamento e lhe financia participações em provas. Aparte esta “ajuda” financeira, Clarisse tem um emprego que financia a sua vida extra-atletismo, o que não a impediu de conciliar treinos com trabalho e vida pessoal, conseguir os mínimos para os Jogos Olímpicos e terminar a final do 3000m obstáculos em 11º lugar, à frente de muitas atletas profissionais, como sejam a campeã do mundo em título.

O João é Portugal.