segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Longa vida ao Salgueiros


Deixo-vos um curto registo daquilo que foram as minhas emoções inerentes à 12ª participação naquela que considero a prova Rainha desta distância, no calendário nacional. Na realidade, correr 10km constitui, para mim, uma prova de velocidade: são 10 séries de 1000m sem intervalo entre elas. As únicas séries que faço durante todo o ano, diga-se em abono da verdade.


Chego tarde, parto tarde e tento serpentear por entre uma floresta de pernas enquanto vou revivendo a minha primeira participação, em 2000, no ano em que me estreei nestas lides. Salto para o ano de 2005, quando convenci dois dos meus irmãos a fazerem-me companhia e recordo como durante a prova, e para evitar a desistência de um deles ao fim do primeiro quilómetro, rolei a 6:15min/km até ao fim. Estou agora no ano de 2008 em que bati o meu recorde da prova, com uns modestos 42:47. Salto para 2009, quando, poucos meses antes desta prova, o Salgueiros foi buscar o meu miúdo a um torneio de futebol de rua, o recebeu de braços abertos, lhe deu estatuto titular, e de como passados dois meses, e não resistindo a um assédio de um clube dito maior, os deixei sem guarda-redes a uma semana do início do campeonato. Uma vez mais confesso com mágoa esta pedra no sapato. A emoção deste ano foi bem mais prosaica: dei um malho de mota ao sair de casa e cheguei à prova em cima da hora e com um joelho a sangrar e a latejar. Rumei de imediato à meta e fiz o que pude: 43:59.


Este ano arredaram-nos do Vidal Pinheiro, mas eu fiz questão de lá passar no final da prova. É impossível olhar aquele cenário de cidade bombardeada sem nos emocionarmos. O futebol do Salgueiros vai treinando um pouco por toda a cidade, pagando sempre o aluguer dos campos, mesmo os municipais. Como contraste, temos o maior clube da cidade a treinar por 500€ por mês num centro de estágios construído especialmente para si por um demagogo autarca que geria um município que fica do outro lado do rio Douro. Sim, pode gostar-se de atletismo e de futebol, mas seria interessante se este último se auto-sustentasse. O escandaloso é que os dinheiros públicos continuam a ser usados para ajudar a bola, e ainda por cima só os clubes mais poderosos. Uma vergonha.


Voltemos às sapatilhas: enquanto conseguir colocar uma perna à frente da outra lá estarei todos os 8 de Dezembro à partida para mais uma festa da mais antiga prova de atletismo do país.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Crónica voluntária

Enquanto organizador do evento 24 h Portugal recebi, como cortesia por parte de um dos nossos patrocinadores – a marca Skechers, um par de sapatilhas idêntico ao que ofertou aos vencedores masculino e feminino da referida prova.

Apesar de ser fiel a um modelo de uma outra marca, aprendi há muitos anos no Brasil o adágio “é de borla, dá até na veia”, pelo que resolvi experimentar as ditas sapatilhas, embora reconhecendo que parti com algumas reservas mentais, fruto do preconceito que advinha do facto de serem uma marca de baixo custo, quando comparada com as de maior implantação no mercado da corrida.

Todavia, as primeiras impressões – e bem sabemos que não há uma segunda oportunidade para uma primeira impressão – foram excelentes: uma sapatilha levíssima e confortável, com uma sola de espuma que garante um amortecimento irrepreensível, sem que no entanto tenha um comportamento demasiado plástico. Pelo contrário, a sua elasticidade permite um arranque rápido da passada, tornando-as velozes, para quem tiver pernas.

Após uma dezena de treinos e cerca de 150km corridos, resolvi arriscar e, pela primeira vez em muitos anos, fazer uma maratona de estrada com um modelo de pisada neutra (sou pronador) e com o qual nunca tinha corrido mais de 18km seguidos. Levei então as minhas GoRunUltra à Maratona de Amsterdão, no dia 19 de Outubro. A melhor prova de que se comportaram de forma irrepreensível, foi calça-las novamente para correr a Maratona do Porto, apenas duas semanas mais tarde. Impecáveis!

Há, no entanto, uma nota nada abonatória, que é o facto de, apenas com 250km de uso, apresentarem já um desgaste de sola muito considerável.

Bem sei que é habitual que atletas patrocinados queiram retribuir a cortesia das marcas, apressando-se a escrever algumas linhas, regra geral tão evidentes quanto infrutíferas no resultado que pretendem alcançar. No entanto, no presente caso, a relação contratual com a Skechers está encerrada, sendo que o que me moveu para escrever esta review informal foi mesmo o enorme conforto que representa correr com as minhas GoRunUltra e o quão contente estou com elas.



domingo, 29 de junho de 2014

Amigos do Timóteo


São quase 3 da matina e neste momento a minha luta é apenas uma: a de combater as pálpebras que insistem em fechar.

Ligo o pc e vou navegando sem destino e sem qualquer esperança de que alguém tenha já publicado o que quer que seja acerca do UTSF. A única intenção é mesmo a de me manter acordado, pois não quero correr o risco de adormecer com o pé enrolado em gelo.

Olho para o monitor, mas não vejo nada. Na verdade vejo o filme do dia a passar-me diante dos olhos. O amanhecer debaixo de uma chuvinha irritante e a rápida descida até ao rio.

Sinto a chuva a penetrar-me até aos ossos e logo em seguida o sol a incomodar-me na nuca.

Oiço riso e gargalhadas entrecortadas por protestos vindos não sei bem de onde.

Vejo-me submerso até à cintura. Levanto os olhos e vejo a serra, o céu pesado. Regresso aos penedos e vejo um companheiro que se estatela de uma altura de quase 2 metros em cima de uma laje e que berra como um condenado.

Pergunto-me o que faço eu aqui.

Vejo um punhado de sorrisos em rostos que olham na minha direcção e oiço palavras de ânimo e incentivo. Estou num qualquer abastecimento rodeado de companheiros incansáveis que hoje trocaram os trilhos pela solidariedade.

Estou de novo no trilho e vou subindo penosamente, para logo em seguida descer com dificuldade, escorregar ao longo de um penedo, raspar um braço num silvado, bater com uma canela num xisto pontiagudo ou a cabeça num troco atravessado ao nível dos olhos mas que não vi, fruto da reflexão do momento: a noite mal dormida, o abastecimento que não chega, a Besta que vai ter de ser vencida com bastões a atrapalharem, o relógio que não pára, a perna direita que já não dobra … o desânimo prestes a apoderar-se de mim e a Patrícia a vir uma vez mais em meu socorro. A minha incansável companheira de jornada, que, do primeiro ao último metro desta aventura, me aturou protestos, blasfémias e amuos; puxando constantemente por mim.

Subimos ravinas intermináveis e descemos vales sem fim. Caminhamos em leitos de rios, mudando incessantemente de margem, enchendo os cantis na mesma água onde mergulhávamos o corpo, tentando usufruir de tudo o que a Freita tem para oferecer a quem se aventura pelas suas entranhas.

Recordo-me de sentir o meu próprio sorriso a tocar-me nas orelhas quando no abastecimento dos 60km retiro o cronógrafo da mochila e verifico que estamos com 14 horas de prova. Faltava a subida da Lomba e toda a Mizarela – que provavelmente seria já vencida de noite, mas mesmo com as dores do pé, que me incapacitavam desde as 11 horas de prova, eu tinha a certeza de que a aventura teria final feliz.

Por falar em pé; é melhor desentrapá-lo e ir dormir.

Obrigado Patrícia.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

7 da matina em Portugal continental e em Gondramaz ...


... passeio-me em silêncio pelo meio da nuvem que ontem desceu para nos cumprimentar e que por aqui foi ficando. Desço a Rua da Picada, que ontem à tarde atravessei correndo por volta do km 38, e verifico que as fitas de balizagem ainda por aqui se mantêm, bailando indolentemente ao ritmo da ligeiríssima brisa que se faz sentir.

Decido regressar ao magnífico campo base que nos proporcionou a organização abútrica e onde os meus companheiros de jornada ainda dormem, após ontem, ou antes hoje, nos termos deitado já bem para lá das 2h da madrugada, no regresso da Loja do Sr. Falcão, onde marcamos presença em mais um tertúlia dedicada ao Trail, este ano tendo tido para mim o significado especial de ter participado na qualidade de orador convidado.

Quando, no último quartel do séc. XIX, o insigne matemático e astrónomo José Falcão ali – naquela casa onde nasceu e onde a sua família desde 1878 mantém o negócio de mercearia, fazendas, vinhos e miudezas – se reunia com os seus correligionários republicanos, estaria longe de imaginar que no dealbar do séc. XXI não só a loja ainda existiria, mas mais do que isso: que ela continuaria a ser um privilegiado local de debate de ideias.

A tertúlia da véspera havia sido longa e prazenteira e ter-se-ia estendido ainda mais pela noite dentro não fora o cansaço espelhado nos muitos rostos que compareceram ao prolongar desta festa que havia começado ainda de madrugada e que nos tinha levado a todos a percorrer os magníficos e invariavelmente enlameados trilhos da Serra da Lousã.

Recordo, com uma gargalhada, a fila de “atletas” que junto ao primeiro abastecimento aguardava pacientemente a sua vez de lavar as sapatilhas, olhando para mim com desdém, como se fosse eu o extraterrestre, quando me dirigi àquele cómico grupo assegurando-lhes que haveria seguramente melhores formas de gastar água pois que era seguro que a lama os acompanharia até ao último km de prova.

De regresso ao refúgio, deito-me novamente na cama e cerro os olhos, mas não sou já capaz de adormecer, o que não me impede de ver desfiar diante dos meus olhos uma sucessão de imagens dignas de um sonho: a permanente bruma da serra conferindo-lhe uma atmosfera misteriosa de romance de Lancelyn Green; as conversas em surdina entrecortadas por um impropério soltado por um qualquer companheiro de aventura que acabara de embater com a cabeça num ramo, um joelho num penedo, que calculara mal a profundidade do lameiro e se enterrara até aos joelhos, ou que acabara de fazer sku só terminando de encontro a uma árvore; os permanentes atravessamentos de regatos através de frágeis e traiçoeiras pontes que não passavam de um par de troncos cobertos de musgo e lama, a opção da travessia pela água para obviar perigos e lavar sapatilhas; a visão longínqua de meia dúzia de ruínas a despontar da neblina, que regra geral significavam a existência de um abastecimento, onde se parava um pouco e finalmente se conseguia olhar o rosto dos companheiros com quem vínhamos partilhando aventuras havia horas, mas cuja dureza e perigosidade do terreno que nos obrigava a concentração permanente nos impedia de às diferentes vozes associar um olhar. As castanhas mãos lamacentas enfiadas numa qualquer taça de batatas fritas ou amendoins, a ínfima simpatia espelhada nos enregelados voluntários que de sorriso rasgado não poupavam nas palavras de ânimo enquanto nos iam enchendo os cantis ou nos iam servindo chá ou sopa, e os cúmplices trocares de olhares entre recém-adquiridos companheiros de aventura, que, dispensando palavras, confirmavam estarmos prontos para nos lançarmos de novo em busca de algo que nunca vou sequer tentar explicar, pois mesmo que viesse um dia a conseguir colocar em palavras, nunca seriam entendidas por quem nunca se lançou por estas serras acima e abaixo em perfeita comunhão com aquilo que de melhor e de menos simpático a natureza tem para connosco partilhar. Seria pois um esforço vão.

Sinto agora alguma agitação e aos poucos vou saindo deste torpor. É hora de rumarmos à Quinta da Paiva, junto ao Parque Biológico, para o corta-mato dos mais novos, e onde não podemos deixar de marcar presença, testemunhando o excelente trabalho que o nosso amigo João Lamas e restante Associação Abútrica têm feito, com a escolinha de trail e corrida.

Resta-me agradecer, uma vez mais, à Associação Abútrica o convite, garantindo-lhes que não se verão livres de mim: em 2015 estarei em Miranda do Corvo para a minha 4ª participação consecutiva no Trilho dos Abutres.

É claro que o fim-de-semana se tornou perfeito devido à companhia dos inestimáveis amigos Rui Pinho, José Moutinho, Carlos Madureira, Ramiro Alvarez e, propositadamente em último, a primeiríssima Flor Madureira, grande vencedora do escalão F45.