segunda-feira, 1 de julho de 2013

UTSF 2013 - antes quebrar que torcer



Deito-me cerimoniosamente num banco de jardim à sombra de um carvalho, enquanto que, de olhos semicerrados, vejo passar diante de mim uma sequência desorganizada de imagens que se vão sucedendo de forma torrencial e aparentemente desordenada, como que peças de um puzzle que não sei ainda se vai ser montado.

Num momento estou tranquilamente sentado num ramo de uma árvore, em plena Besta a hidratar e a recuperar forças, convocando todos os sentidos para absorver a imponência desta íngreme escombreira vomitada das entranhas da serra, enquanto vou perscrutando o horizonte em busca do caminho até então percorrido, e no instante seguinte vejo-me já a escorregar um qualquer penedo do rio Paivô, com o consequente mergulho naquelas cristalinas águas.

Recordo como às três e meia da manhã não conseguia pregar olho. À ansiedade própria do momento veio juntar-se o vento, que ao abanar aqueles carvalhos e araucárias que circundavam a nossa frágil tenda parecia agarrar-me pelos ombros enquanto me abanava e ia perguntando se tinha bem a certeza de me querer uma vez mais lançar nesta brutal aventura.

O facto de ter calor em calções e t-shirt, deitado por cima do saco-cama em plena serra da Freita àquela hora da manhã era já um prenúncio do que nos esperaria.

Levantara-me para passar alguma água pelo rosto e acabei por tomar um duche. Deambulei pelo parque, iluminado por um magnífico luar, enquanto fui observando a enérgica porém silenciosa azáfama em que a vasta equipa da organização se desdobrava para que nada falhasse na hora do tiro de partida.

Recordo os primeiros quilómetros percorridos a ritmo controlado, contrastando com a impaciência de atletas mais jovens que se lançavam furiosamente pelas ladeiras abaixo e que invariavelmente ultrapassávamos nas subidas, para logo em seguida se repetir a mesma sequência.

Vou recordando rostos e conversas. O João, o Luis, o Pedro, o Joaquim e tantos outros com quem fomos traçando a rota que nos trouxe até este quilómetro cinquenta. Uma vez mais me interrogo por onde andará o Carlos, esse amigo tão recente mas que ocupa já um lugar tão importante na minha vida como se o conhecesse desde sempre.

De forma entrecortada vou ouvindo vozes e pedaços soltos de conversas: um atleta que está a soro, um outro que teve um ataque de pânico, um que torceu o joelho, muitos desidratados. Ouço os motores das carrinhas que vão chegando vazias e partindo repletas de atletas que não resistem às agruras da serra nem às condições meteorológicas.

Ainda não sei como vou sair daqui, mas sei que vou sair acompanhado. Até aos 40 quilómetros o Rui havia discretamente moderado o seu ritmo para que eu o pudesse acompanhar e não seria agora que o duo se iria desfazer.

Ouço finalmente a sua voz, o que é um bom augúrio, pois a saída da Besta para um planalto árido e nu como um joelho, em pleno pico de calor e onde não corria uma brisa, atirou-nos para um estado tal de fraqueza que cheguei a temer a desistência. À chegada aqui, o Rui sentara-se à sombra a comer e a beber, tentando recuperar forças.

Reconheço também a voz do Luis, do Fernando e da esposa e até a do Sr. António do Alfaiate, para além de muitas outras desconhecidas, mas a do Rui sobressai. Ele ainda não sabe, mas eu tenho já a certeza de que a prova, para nós, está prestes a ser retomada. Ergo-me lentamente, recoloco a mochila, pego nos bastões e pergunto ao Rui se vai passar o resto do dia na conversa, mas quando dou por mim já ele está novamente a rebocar-me.

O lugar-comum que atesta poder a cabeça mais do que as pernas aplica-se na perfeição àquilo que foi a minha prova entre os quilómetros 50 e 60, e que se pode resumir na capacidade de deixar bem claro ao corpo que quem manda é a cabeça e que em momento algum vai haver negociação. Com a boca como única aliada do cérebro, mereço a partir daqui o epíteto de Rezingão com que o Rui me crismou.

Mais rio, mais subidas a pique e descidas infernais. Uma e outra vez a sensação de que nada mais importa do que colocar um pé à frente do outro e de que cada passada conseguida é uma importante batalha vencida rumo a um objectivo que irá inevitavelmente ser cumprido.

A chegada à Lomba é um momento épico, em que somos saudados como heróis, como se a prova estivesse concluída e não tivéssemos ainda 10 brutais quilómetros pela frente. Companheiros que nos retiram as mochilas dos ombros, nos enchem os bidons e nos preparam os frontais que iremos precisar daquele ponto em diante, nos colocam tijelas de sopa nas mãos e as recolhem mal acabamos de sorver para logo nos entregarem uma bifana e uma cerveja já aberta. Gente boa, muito boa, ao longo de toda a prova. Uma organização inexcedível, composta por atletas e seus familiares, que sabem como ninguém a importância destes gestos e atitudes. Rostos que jamais esquecerei.

Dali em diante a progressão fazia-se de noite, com a dificuldade acrescida de só dispormos de uma hora até ao controlo da Castanheira. Alcançamos e Célia Azenha e agora como trio dispusemo-nos a chegar ao Merujal, mas estávamos longe de imaginar as peripécias que nos esperavam. Num ponto em que o trilho atravessa a estrada aparece um carro da organização e pelo rádio ouvia-se claramente a voz do director da prova dizendo que acabava de barrar o caminho a dois atletas. Não nos resignamos e continuamos, agora pela estrada, para logo adiante nos embrenharmos em busca do trilho, mas onde haveríamos de nos perder e fazer várias tentativas de incursão pelo meio de mato alto. Numa altura em que a Célia estava já sem frontal conseguimos, numa das nossas incursões exploratórias, entroncar no PR7, cujo troço final percorremos em direcção à meta, onde chegamos 19 horas após termos partido, com bem mais de 70 quilómetros, exaustos, sujos e arranhados mas com um indisfarçável sorriso nos lábios.

Quanto ao Rui, confirmo a certeza de que nos vamos aturar até sermos velhinhos. 

23 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns!!!
Aquele abraço!
Paulo Rodrigues

elisa disse...

Ah grandes leões!
E que grande equipa!

elisa disse...

Grande equipa!
Parabéns mais uma vez.

Anónimo disse...

Muito bem João!

Como já escrevi:
Trail é exaltação da conduta em detrimento da façanha.
Trail é passar despercebido pela montanha.

A serra vai lá continuar ao sol, à chuva, ao vento. Nós gostamos da serra, só que a serra tem os seus humores, que se revelam entre outras coisas através da meteorologia no tal dia que a vamos visitar.

Tive pena de não ir, mesmo muita pena! Alguns disseram que me safei de boa, o calor e tal!!! Eu respondi que andei o dia todo mal disposto por não estar presente e com imagens da malta que lá estava sempre presentes na minha cabeça!

Acho que tu, o Rui, o Carlos e o Luís, são tipos que passam despercebidos na montanha, mas não passam despercebidos à malta do trail.

Trail é empenho e dedicação.
Trail valoriza a ética na competição.
Ganha o último e o primeiro da classificação.

(Fico a dever uma 'pomada' das boas!

Abraço

José Capela

Rui Pinho disse...

Olha, nem sei que te diga. Acho que, finalmente, depois de inúmeros dias a falar pelos cotovelos, fiquei sem palavras, porque este texto diz tudo. Continuo a achar que relatas na perfeição aquilo que se passou, mas como eu estive lá o tempo todo, vejo exactamente na mesma forma. Quanto ao "Rezingão", se assim não fosses não nos aturaríamos. É que tem que haver sempre um que proteste quando o que não se cala emite um longo silêncio. Obrigado por me aturares. Eu não me importo nada de te aturar até seres velhinho, afinal ainda não distingo o "leite quartozo" do "xisto cremoso" ou do "granito magnanime"; e eu quero saber onde ponho os pés ;)
Aquele abraço!

Elisabete disse...

Excelente!!! Para além de grandes atletas, ainda são 2 excelentes escritores:-)

Carlos Cardoso disse...

Muitos parabéns. Vocês os dois além de grandes atletas escrevem de uma forma fantástica. Obrigado por me transportarem um pouco para dentro da V/ prova.
Abraço com desejos de que andem por cá muitos e muitos anos, de preferência a fazer dupla por essas montanhas e montes fora, e tb por aqui nos V/ blogues. Já vos estou a ver, rezingões (os dois) mas sempre com pinta - tipo os dois velhotes dos marretas:D

João Paulo Meixedo disse...

Obrigado, Paulo, sabes bem do que falo (escrevo).
Aquele abraço

João Paulo Meixedo disse...

Obrigado, cara priminha; em equipa tudo se resolve.
Bj

João Paulo Meixedo disse...

Pois faltaste, Capela, mas também te livraste de boa.
As coisas não montanha são como referes, quanto ao resto é bondade tua :)
As melhorias para o teu irmão.
Um abraço.

João Paulo Meixedo disse...

:) em grande, Rui.
E não te esqueças da promessa ao Luis: companhia numa maratona, ele com 75, eu com 65 e tu com 60.
Haja pernas ;)
Um abraçôm.

João Paulo Meixedo disse...

Obrigado, Elisabete, mas nós somos é dois aprendizes de feiticeiro.
Bj

João Paulo Meixedo disse...

Ah ah ah, essa dos velhotes dos marretas é uma boa imagem, Carlos.
Obrigado pelos elogios.
Um abraço.

Jorge Branco disse...

O que é que se de pode dizer depois de ler um texto com a qualidade deste?
Francamente fica-se sem palavras.
Só posso deixar o meu forte aplauso e por isso vou dar destaque no UK!
PARABÉNS!

Anónimo disse...

Grande Meixedo


Parabéns pelo texto.
Faço das palavras do Capela minhas.
O importante é preservamos o espírito do Trail e vocês são isso mesmo.

Viva o Trail !!!

Grande Abraço,
João Lamas

João Paulo Meixedo disse...

Grande Jorge Branco, sempre inexcedível nos elogios aos amigos :)
Aquele abraço.

João Paulo Meixedo disse...

... e grande João Lamas.

Todos somos o trail, caracóis incluídos ;)
Aquele abraço

Fernando Andrade. disse...

Fantástico relato, Amigo Meixedo. E uma brilhante vitória merecedora dos maiores louvores. Sei que não és destas coisas, mas curvo-me diante deste feito que completaste com a bravura dos campeões.E sei do que falo, porque me fiquei pelo caminho da única vez que tentei. Parabéns Amigo e um grande abraço.

JoaoLima disse...

Excelente!

Os elogios, traduzidos em meras palavras, ficam pobres perante tamanho texto.

Parabéns!

João Paulo Meixedo disse...

Sei bem que sabes do que falas, amigo Fernando; aquilo é duro, muito duro.
Agradeço as tuas palavras.
Aquele abraço.

João Paulo Meixedo disse...

Muito obrigado pelas palavras João Lima; ainda me convencem de que sei escrever :)
Até breve

joaquim adelino disse...

Grande amigo do Norte, fiquei muito contente quando soube que completaste a prova, ainda lá estive até muito tarde à espera da vossa chegada mas não me souberam explicar onde é que vocês andavam. Agora sei e curvo-me perante o vosso heroísmo, ainda resisti até à Garra mas depois desisti de continuar, era demais. Quando cheguei à Póvoa das Leiras e não vos vi lá fiquei muito contente, a Célia partiu pouco depois e ainda bem que vos alcançou e puderam fazer aquela parte final na sua companhia. Vocês formaram uma excelente dupla, enquanto durou gostei de andar na vossa companhia. Abraço.

João Paulo Meixedo disse...

Grande amigo do Sul; desculpa mas com o facebook um tipo até se esquece que existe o blog ...
Só agora vi o teu comentário.
Pois, eu percebi que tinhas ficado e nos 50km confirmei o teu abandono.
No ano passado foste tu mais longe.
Talvez na próxima edição acabemos ambos ... se me inscrever ;)