Deito-me cerimoniosamente num banco de jardim à sombra de um
carvalho, enquanto que, de olhos semicerrados, vejo passar diante de mim uma
sequência desorganizada de imagens que se vão sucedendo de forma torrencial e aparentemente desordenada, como que peças de um puzzle que não sei
ainda se vai ser montado.
Num momento estou tranquilamente sentado num ramo de uma árvore,
em plena Besta a hidratar e a recuperar forças, convocando todos os sentidos para
absorver a imponência desta íngreme escombreira vomitada das entranhas da
serra, enquanto vou perscrutando o horizonte em busca do caminho até então
percorrido, e no instante seguinte vejo-me já a escorregar um qualquer penedo
do rio Paivô, com o consequente mergulho naquelas cristalinas águas.
Recordo como às três e meia da manhã não conseguia pregar olho. À
ansiedade própria do momento veio juntar-se o vento, que ao abanar aqueles carvalhos
e araucárias que circundavam a nossa frágil tenda parecia agarrar-me pelos ombros
enquanto me abanava e ia perguntando se tinha bem a certeza de me querer uma vez
mais lançar nesta brutal aventura.
O facto de ter calor em calções e t-shirt, deitado por cima do
saco-cama em plena serra da Freita àquela hora da manhã era já um prenúncio do
que nos esperaria.
Levantara-me para passar alguma água pelo rosto e acabei por
tomar um duche. Deambulei pelo parque, iluminado por um magnífico luar, enquanto
fui observando a enérgica porém silenciosa azáfama em que a vasta equipa da
organização se desdobrava para que nada falhasse na hora do tiro de partida.
Recordo os primeiros quilómetros percorridos a ritmo controlado,
contrastando com a impaciência de atletas mais jovens que se lançavam
furiosamente pelas ladeiras abaixo e que invariavelmente ultrapassávamos nas
subidas, para logo em seguida se repetir a mesma sequência.
Vou recordando rostos e conversas. O João, o Luis, o Pedro, o
Joaquim e tantos outros com quem fomos traçando a rota que nos trouxe até este
quilómetro cinquenta. Uma vez mais me interrogo por onde andará o Carlos, esse
amigo tão recente mas que ocupa já um lugar tão importante na minha vida como
se o conhecesse desde sempre.
De forma entrecortada vou ouvindo vozes e pedaços soltos de
conversas: um atleta que está a soro, um outro que teve um ataque de pânico, um
que torceu o joelho, muitos desidratados. Ouço os motores das carrinhas que vão
chegando vazias e partindo repletas de atletas que não resistem às agruras da
serra nem às condições meteorológicas.
Ainda não sei como vou sair daqui, mas sei que vou sair
acompanhado. Até aos 40 quilómetros o Rui havia discretamente moderado o seu
ritmo para que eu o pudesse acompanhar e não seria agora que o duo se iria
desfazer.
Ouço finalmente a sua voz, o que é um bom augúrio, pois a saída
da Besta para um planalto árido e nu como um joelho, em pleno pico de calor e
onde não corria uma brisa, atirou-nos para um estado tal de fraqueza que
cheguei a temer a desistência. À chegada aqui, o Rui sentara-se à sombra a
comer e a beber, tentando recuperar forças.
Reconheço também a voz do Luis, do Fernando e da esposa e até a
do Sr. António do Alfaiate, para além de muitas outras desconhecidas, mas a do
Rui sobressai. Ele ainda não sabe, mas eu tenho já a certeza de que a prova,
para nós, está prestes a ser retomada. Ergo-me lentamente, recoloco a mochila,
pego nos bastões e pergunto ao Rui se vai passar o resto do dia na conversa,
mas quando dou por mim já ele está novamente a rebocar-me.
O lugar-comum que atesta poder a cabeça mais do que as pernas aplica-se
na perfeição àquilo que foi a minha prova entre os quilómetros 50 e 60, e que
se pode resumir na capacidade de deixar bem claro ao corpo que quem manda é a
cabeça e que em momento algum vai haver negociação. Com a boca como única
aliada do cérebro, mereço a partir daqui o epíteto de Rezingão com que o Rui me
crismou.
Mais rio, mais subidas a pique e descidas infernais. Uma e outra
vez a sensação de que nada mais importa do que colocar um pé à frente do outro
e de que cada passada conseguida é uma importante batalha vencida rumo a um objectivo
que irá inevitavelmente ser cumprido.
A chegada à Lomba é um momento épico, em que somos saudados como
heróis, como se a prova estivesse concluída e não tivéssemos ainda 10 brutais
quilómetros pela frente. Companheiros que nos retiram as mochilas dos ombros,
nos enchem os bidons e nos preparam os frontais que iremos precisar daquele
ponto em diante, nos colocam tijelas de sopa nas mãos e as recolhem mal acabamos
de sorver para logo nos entregarem uma bifana e uma cerveja já aberta. Gente
boa, muito boa, ao longo de toda a prova. Uma organização inexcedível, composta
por atletas e seus familiares, que sabem como ninguém a importância destes
gestos e atitudes. Rostos que jamais esquecerei.
Dali em diante a progressão fazia-se de noite, com a dificuldade
acrescida de só dispormos de uma hora até ao controlo da Castanheira. Alcançamos
e Célia Azenha e agora como trio dispusemo-nos a chegar ao Merujal, mas estávamos
longe de imaginar as peripécias que nos esperavam. Num ponto em que o trilho
atravessa a estrada aparece um carro da organização e pelo rádio ouvia-se
claramente a voz do director da prova dizendo que acabava de barrar o caminho a
dois atletas. Não nos resignamos e continuamos, agora pela estrada, para logo
adiante nos embrenharmos em busca do trilho, mas onde haveríamos de nos perder
e fazer várias tentativas de incursão pelo meio de mato alto. Numa altura em
que a Célia estava já sem frontal conseguimos, numa das nossas incursões
exploratórias, entroncar no PR7, cujo troço final percorremos em direcção à
meta, onde chegamos 19 horas após termos partido, com bem mais de 70
quilómetros, exaustos, sujos e arranhados mas com um indisfarçável sorriso nos
lábios.
Quanto ao Rui, confirmo a certeza de que nos vamos aturar até sermos velhinhos.