... passeio-me em silêncio pelo meio da nuvem que ontem
desceu para nos cumprimentar e que por aqui foi ficando. Desço a Rua da Picada,
que ontem à tarde atravessei correndo por volta do km 38, e verifico que
as fitas de balizagem ainda por aqui se mantêm, bailando indolentemente ao
ritmo da ligeiríssima brisa que se faz sentir.
Decido regressar ao magnífico campo
base que nos proporcionou a organização abútrica e onde os meus companheiros de
jornada ainda dormem, após ontem, ou antes hoje, nos termos deitado já bem para
lá das 2h da madrugada, no regresso da Loja do Sr. Falcão, onde marcamos
presença em mais um tertúlia dedicada ao Trail, este ano tendo tido para mim o
significado especial de ter participado na qualidade de orador convidado.
Quando, no último quartel do séc.
XIX, o insigne matemático e astrónomo José Falcão ali – naquela casa onde
nasceu e onde a sua família desde 1878 mantém o negócio de mercearia, fazendas,
vinhos e miudezas – se reunia com os seus correligionários republicanos,
estaria longe de imaginar que no dealbar do séc. XXI não só a loja ainda
existiria, mas mais do que isso: que ela continuaria a ser um privilegiado
local de debate de ideias.
A tertúlia da véspera havia sido
longa e prazenteira e ter-se-ia estendido ainda mais pela noite dentro não fora
o cansaço espelhado nos muitos rostos que compareceram ao prolongar desta festa
que havia começado ainda de madrugada e que nos tinha levado a todos a
percorrer os magníficos e invariavelmente enlameados trilhos da Serra da Lousã.
Recordo, com uma gargalhada, a
fila de “atletas” que junto ao primeiro abastecimento aguardava pacientemente a
sua vez de lavar as sapatilhas, olhando para mim com desdém, como se fosse eu o
extraterrestre, quando me dirigi àquele cómico grupo assegurando-lhes que
haveria seguramente melhores formas de gastar água pois que era seguro que a
lama os acompanharia até ao último km de prova.
De regresso ao refúgio, deito-me
novamente na cama e cerro os olhos, mas não sou já capaz de adormecer, o que não
me impede de ver desfiar diante dos meus olhos uma sucessão de imagens dignas
de um sonho: a permanente bruma da serra conferindo-lhe uma atmosfera
misteriosa de romance de Lancelyn Green; as conversas em surdina entrecortadas
por um impropério soltado por um qualquer companheiro de aventura que acabara de
embater com a cabeça num ramo, um joelho num penedo, que calculara mal a
profundidade do lameiro e se enterrara até aos joelhos, ou que acabara de fazer
sku só terminando de encontro a uma árvore; os permanentes atravessamentos de
regatos através de frágeis e traiçoeiras pontes que não passavam de um par de
troncos cobertos de musgo e lama, a opção da travessia pela água para obviar
perigos e lavar sapatilhas; a visão longínqua de meia dúzia de ruínas a
despontar da neblina, que regra geral significavam a existência de um
abastecimento, onde se parava um pouco e finalmente se conseguia olhar o rosto
dos companheiros com quem vínhamos partilhando aventuras havia horas, mas cuja
dureza e perigosidade do terreno que nos obrigava a concentração permanente nos
impedia de às diferentes vozes associar um olhar. As castanhas mãos lamacentas
enfiadas numa qualquer taça de batatas fritas ou amendoins, a ínfima simpatia
espelhada nos enregelados voluntários que de sorriso rasgado não poupavam nas
palavras de ânimo enquanto nos iam enchendo os cantis ou nos iam servindo chá
ou sopa, e os cúmplices trocares de olhares entre recém-adquiridos companheiros
de aventura, que, dispensando palavras, confirmavam estarmos prontos para nos
lançarmos de novo em busca de algo que nunca vou sequer tentar explicar, pois
mesmo que viesse um dia a conseguir colocar em palavras, nunca seriam entendidas
por quem nunca se lançou por estas serras acima e abaixo em perfeita comunhão
com aquilo que de melhor e de menos simpático a natureza tem para connosco
partilhar. Seria pois um esforço vão.
Sinto agora alguma agitação e aos
poucos vou saindo deste torpor. É hora de rumarmos à Quinta da Paiva, junto ao
Parque Biológico, para o corta-mato dos mais novos, e onde não podemos deixar
de marcar presença, testemunhando o excelente trabalho que o nosso amigo João
Lamas e restante Associação Abútrica têm feito, com a escolinha de trail e
corrida.
Resta-me agradecer, uma vez mais,
à Associação Abútrica o convite, garantindo-lhes que não se verão livres de mim:
em 2015 estarei em Miranda do Corvo para a minha 4ª participação consecutiva no
Trilho dos Abutres.
É claro que o fim-de-semana se
tornou perfeito devido à companhia dos inestimáveis amigos Rui Pinho, José Moutinho, Carlos Madureira, Ramiro Alvarez e, propositadamente em último, a
primeiríssima Flor Madureira, grande vencedora do escalão F45.