
São agora cinco da tarde e um
turbilhão de imagens assalta-me a memória recente e passa à frente dos meus
olhos, mesmo quando mergulho totalmente no Atlântico e me deixo arrastar pela
ondulação.
Após umas braçadas indolentes
regresso ao rochedo para o qual me ergo lentamente. Vou alongando os músculos
enquanto aguardo que o sol do final da tarde me vá secando as carnes, antes de
poder voltar a vestir-me.
Com o olhar fixo no horizonte vou
fazendo o filme da aventura que agora termina e que na realidade começou com
uma provocação lançada no bem regado jantar da véspera, na Casa da Ermida, um
turismo de habitação na Ribeira do Nabo: “Então não eras tu o homem que queria
percorrer a ilha de ponta a ponta? Já cá estamos há uma semana e ainda nem
tiraste as sapatilhas do saco!”
Quando às 7 da manhã abro a porta
de casa e me deparo com aquele céu pesado, com a nuvem quase a tocar-me na cabeça,
de imediato me preparo para o arrepio, mas aguardo em vão. Não estou no Porto,
mas sim nos Açores, onde a amplitude térmica é praticamente inexistente.
Em bicos de pés dirijo-me para a
cozinha, onde aparece em seguida o meu irmão mais novo, que organiza um ligeiro
briefing enquanto eu vou preparando um frugal pequeno-almoço. A sugestão do
Jaime era simples mas pareceu-me eficaz: marcaríamos idênticos pontos numerados
em dois mapas de estradas, e eu iria enviando periódicas mensagens de telemóvel
informando a minha posição aproximada, ligando-lhe quando quisesse ser
recolhido.
– Ó Jaime já chega, não marques
mais pontos.
– Afinal quantos quilómetros
pensas fazer?
– Depois da jantarada de ontem?!
Sei lá … entre 10 e 30, mas marca lá os mapas até ao final, porque assim já
fica para quando fizer a próxima etapa.
Domingo de manhã, numa ilha com
dez mil habitantes somos os únicos na estrada. Ponta dos Rosais. O Faial ao
longe. Um último abraço, desejos de boa sorte e lá parto por um estradão de
terra, com os 1200ml de água a pesarem-me nos cantis e o impulso de despejar
pelo menos metade. Em boa hora não o fiz.
A calma é total e a ilha parece
totalmente inabitada, à excepção de algumas das trinta mil vacas com quem me
vou cruzando. O verde domina, salpicado aqui e ali por sebes de hortênsias. Ao
longe vejo o Pico. Faço alguns quilómetros em alcatrão. Ao fim do sexto, deixo
de contar os coelhos atropelados.
Primeira fonte, primeira paragem,
primeiro sms: “10:25. Ponto 9. 2:00h de treino. 16km. Tudo ok”. A água, por
estas bandas, tem sempre uma cor estranha, pelo que opto por me refrescar,
molhar o boné, mas beber apenas dos cantis, deixando a das fontes lá mais para
diante, quando aqueles começarem a esvaziar. Mal eu sabia que esta seria a
primeira e última fonte ao longo de 67km e mais de 9 horas de aventura.
Com o ânimo em alta, arranco para
uma subida de cerca de 7km, feita maioritariamente a passo e a entrar
progressivamente na nuvem. O mapa é fraquíssimo mas como tem os cumes (picos)
assinalados permite-me optar por um caminho de terra que me parece ser a descer,
o que se confirma. Faço quatro magníficos quilómetros por um estradão de terra
que vai descaindo ligeiramente para o flanco norte e que me retira da nuvem e
me devolve o sol. Vejo lá em baixo uma fajã e ao longe a Graciosa.
Termina a descida. Primeiro gel.
Uns goles de água. Contidos, pois não voltei a avistar fontes desde a última
paragem. Segundo sms: “12:00. Entre pontos 14 e 15. 3:30h de treino. 28km. Sinto-me
bem. Vou continuar”
Consulto o mapa e resolvo
arriscar por um local por onde não tem qualquer caminho assinalado. Saiu-me
bem, há trilho. A topografia vai agora oscilando entre subidas e descidas, pelo
que abrando o ritmo. Um coelho salta ao caminho e corre umas dezenas de metros
à minha frente até desparecer num arbusto.
Começo a ficar com fome e sede. Consulto
o mapa em busca de uma estrada. Opto por um caminho que me despejará no
alcatrão à entrada de uma pequena povoação onde espero encontrar um café
aberto.
Tal como previsto, abordo a
estrada à entrada do Norte Pequeno. Estou numa povoação fantasma! Bem sei que é
domingo e hora de almoço. Avisto um café. Fechado! Continuo em busca de um
segundo, que não tarda em aparecer. Fechado! Nem vivalma. Um fila de S. Miguel
olha-me do outro lado da estrada. Paro de correr e avanço cautelosamente. Tomo
segundo gel, dou uns goles ainda mais contidos e preparo-me para enviar
terceiro sms. Ao pegar no telemóvel apercebo-me de que o segundo nunca chegou a
ser enviado.
Uma da tarde. 35 quilómetros percorridos.
Sede e fome. Cafés fechados. Provisões: 400ml de água, duas embalagens de gel.
Vou-me encaminhando para o final da povoação, com o telemóvel na mão, atento a
uma eventual captação de rede, enquanto decido o que fazer.
Opto por seguir pela estrada, que
haverá por me levar a outra povoação e até pode ser que pelo caminho encontre
um café. Subo ligeiramente até à crista da ilha e começo a descer agora para a
encosta sul. S. Jorge tem cerca de 55 quilómetros de extensão mas não tem mais
do que 7 ou 8 de largura, pelo que não sendo possível percorrê-la sempre pela
linha de cumeada passamos o tempo a oscilar entre as abruptas encostas norte e
sul. Apanho rede. Numa ligação entrecortada e que caiu uma meia dúzia de vezes
consigo confirmar que o Jaime percebeu as palavras “estou bem, vou até ao fim”.
“Ok. Percebi. Força”, retorquiu. Não mais teria rede.
Agora desço a bom ritmo e ganho
novo ânimo. Recupero forças. Avisto uma esplanada. Solto uma gargalhada e
acelero ainda mais. Já sonho com esta paragem técnica. Terão sandes de
presunto? Como um chocolate, bebo uma cola e compro uma garrafa de litro e meio
de água, penso. FECHADO. REABRIMOS ÀS 14:30 …
O desalento é total. Grito
quantos palavrões me vêem à cabeça. Insulto os açorianos. É 1:30h, pelo que até
valeria a pena esperar uma hora, mas uma semana nesta ilha já deu para perceber
o que vale o aviso: nada! Gente afável, acolhedora e simpática de quem é
impossível não se gostar, mas trabalhar é uma outra história. Os subsídios vão
dando para cerveja e cigarros e até para rações para o gado, como se a ilha não
estivesse forrada a pasto!
A irritação dá-me para estugar a
passada e continuo a descer. Descer de mais. Começo a ficar preocupado. Tudo o
que desce tem que subir. Mais um aglomerado de casas. Nem vivalma. Hesito em
bater a uma porta para pedir água. Decido fazê-lo na próxima casa.
Decisão errada. Não fazia ideia
do que me esperava. Termina a descida e terminam as casas. Mais de 5 horas de
esforço e começa a subida. O gps apita: 42 km. “Rica maratona”. Agora caminho,
exausto. Alimento-me de amoras na beira da estrada. Menos de 200ml de água. Vou
dando goles minúsculos. Continuo a subir. A pique. Uma fonte! Seca! Mais
amoras. Entro na nuvem. O que me vale é a humidade que normalmente ronda os 95%
e que contribui assim para a minha hidratação. Um regato de cor amarelada.
Desço o barranco, descalço-me e mergulho as pernas. A cor e o cheiro da água
desaconselham-me de aí molhar o boné.
De volta ao alcatrão, que jamais
abandonaria, confirmo mais uma opção errada: optei por sapatilhas de trail, mas
nas últimas 2 horas não havia saído da estrada e a previsão era a de que essa
situação se mantivesse até ao final. Outra fonte seca. Faz sentido, estou na
zona da Ribeira Seca! Poupo-vos ao meu desespero: 12 quilómetros a subir da
cota 250 para a 750, dentro da nuvem, sem água e sem comida. Algures a meio da
subida ingeri o 3º gel. De 10 em 10 minutos passa um carro com luzes de
nevoeiro acesas.
O desnível começa a atenuar-se.
Desarrolho um dos bidons para tentar escorrer algum vestígio de líquido que
ainda por lá pudesse estar. Sento-me numa pedra com a cabeça entre os joelhos. Vêem-me
as lágrimas aos olhos. Não há água, não há rede de telemóvel, mas agora só pode
ser a descer e daqui a uns 3 ou 4 quilómetros há uma povoação.
Levanto-me resignado. Começa a
descida. Corro. As pernas respondem e vou acelerando o ritmo. Ganho ânimo. Os
minutos passam. Estive aqui há uns dias e sei que haverá casas mais tarde ou
mais cedo. Foram 20 minutos feitos a um ritmo impensável, mas ao fim de 58
quilómetros e quase 8 horas de esforço vejo um oásis: uma casa. Bato. Cães
ladram. Chamo. Cães ladram. Contorno a casa. Os cães estão presos. Encontro uma
torneira. Não consigo esperar que o bidon esteja cheio. Num momento coloco-o
debaixo da torneira e no momento seguinte já estou a verter pela garganta
abaixo. Metade escorre-me pelo peito até aos pés. Acabou. Encho e volto a
despejar pela garganta.
Encho ambos os bidons até cima.
Ingiro o 4º gel e, com um sorriso de orelha a orelha ponho-me a caminho. Apesar
de ainda me restar mais de uma hora de esforço, sei que a aventura está
terminada e que chegarei ao extremo oriental da ilha nem que seja a rebolar.
Percorro cerca de um quilómetro e, ironia do destino, deparo-me com um café
aberto.
Entro e, de imediato, o enorme
borburinho que se ouvia pára instantaneamente como se alguém houvesse carregado
num interruptor mágico. Peço um chocolate, um pacote de batatas fritas e uma
cerveja. Pago e saio para a esplanada. Um a um todos os ocupantes do café
assomam à porta para tirar a pinta ao extraterrestre. A verdade é que não vi
uma única pessoa a correr, nem sequer uma única bicicleta, nas duas semanas que
passei nos Açores.
Mudei recentemente, e pela
primeira vez, de rede telemóvel, porque me foi apresentado um pacote altamente
vantajoso. O que o vendedor se esqueceu de me dizer, e é o melhor dos motivos
para aderirmos à rede Optimus, é que pelo facto de nunca haver rede não
conseguiremos fazer metade das chamadas que pretendemos, o que se traduz numa
inegável poupança.
À vista do quartel dos bombeiros
dirigi-me ao mesmo para solicitar que me deixassem fazer uma chamada para as
Velas, para que me viessem buscar. O responsável da Protecção Civil estava
incrédulo que eu tivesse vindo “de tão longe de bicicleta”. Quando o esclareci
acerca da aventura que estava prestes a concluir, soltou um impropério nada
condizente quer com a farda que garbosamente envergava quer com a prática dos
açorianos, gente de quem é raro ouvir-se um palavrão.
Acabo as minhas reflexões,
continuando a contemplar o ilhéu do Topo, e sento-me agora de cerveja na mão,
mas não tenho tempo de a levar aos lábios, pois família e amigos acabam de
chegar para me resgatar. Abraços e felicitações e sentamo-nos todos de cerveja na
mão e olhar no horizonte a apreciar a sorte que temos em estarmos aqui todos a
desfrutar do que a vida nos oferece.