A
azáfama das últimas horas tinha agora dado lugar a um tranquilo anoitecer e os
ruídos de passos e conversas iam progressivamente desaparecendo, cedendo
protagonismo aos ruídos nocturnos da montanha, a coberto de uma magnífica lua
cheia que começava a desenhar-se por detrás de pinheiros e araucárias.
A
conversa, cada vez mais pausada, ia sendo entrecortada por um turbilhão de
pensamentos, tentando imaginar cenários e antecipar sensações. Sinto uma mão a
pousar-me no ombro e, ao descrever um preguiçoso movimento de cabeça com o
intuito de lhe associar um rosto, ouço a voz do Vítor Coelho: “Ó Meixedo, não
achas melhor ires descansar? Olha que aquilo amanhã não é para meninos”
Sorri-lhe,
emborquei de um trago o que me restava da cerveja, e com um indolente abanar de
cabeça assenti. Despedi-me do meu amigo Armandino e, sem grande convicção,
iniciei a dezena de passos que me separava daquele que por uma noite iria ser o
meu leito.
Do
meio do nada surge um veículo todo-o-terreno, pára a sua marcha e fica envolto
na nuvem de pó que ele mesmo havia acabado de levantar. Uma buzinadela, duas, e
um grito que vem do seu interior: ACABOU!
Viro-me
instintivamente na direcção no meu companheiro de jornada, não sem antes apagar
a luz do frontal para não lhe ferir a visão, e tento nos seus olhos perceber
alguma reacção. O Rui olha-me com uma expressão que adivinho idêntica à minha,
igualmente procurando desvendar os meus sentimentos.
Somos
interrompidos por novo grito vindo do interior: ACABOU! ESTÁ NEVOEIRO NA
MIZARELA! Encolhemos
os ombros, entramos na viatura e antes que pudesse pôr o cinto já estava parado
no abastecimento dos 60km. “Querem ou não?”, perguntava o Moutinho. Mas eu não
sabia o que responder pois nem tinha ouvido a parte inicial da questão: nos
últimos minutos encontrava-me absorto a rever, numa rápida sucessão de imagens,
as quinze horas de aventuras que acabavam de ser abruptamente interrompidas.
Tinha
sido acordado por grossas bátegas de chuva às 4 da manhã e, após identificada a
origem do ruído e de ter respondido a um arrepio com um segundo saco-cama,
voltei a embrenha-me no sono, até ser interrompido pelo despertador às sete da
manhã. A prova teria início às oito pelo que, instalado literalmente em cima da
linha de partida e sabedor de que o secretariado abriria às seis, tinha a
certeza de que acordaria com o habitual rebuliço que se erigiria à minha volta.
Não poderia estar mais errado; o povo da montanha é sereno e ninguém me tinha
acordado.
Arrasto-me para fora dos sacos-cama e salto para a chuva, uma rápida visita ao quarto de banho, um café e lá vou deglutindo o pequeno-almoço enquanto me vou equipando e vou cumprimentando atarefados companheiros que se espantam com a minha aparente calma, ainda em cuecas em plena linha de partida.
Caras
conhecidas, abraços, fotos, tensão e alegria, muita alegria e a certeza de que
não passava de um atrevido no meio desta casta muito especial de atletas. Ainda
esfrego os olhos enquanto vou trocando impressões com o Rui literalmente na
cauda do pelotão quando é dado o tiro de partida.
Arrancamos serra acima. A chuva desapareceu. Vou entretido a experimentar os bastões e a conversar com amigos, conhecidos e desconhecidos. O tempo passa. Fila indiana. Agora vamos serra abaixo.
Passamos
alguns companheiros. Discutimos política. Já não somos os últimos. Corremos nas
descidas e caminhamos nas subidas. O plano não existe. Nem no que diz respeito
ao terreno nem no que diz respeito a estratégia. Abrimos o peito, enchemos
pulmões.
Atravessamos
uma galeria de uma antiga mina de volfrâmio, memória de que estes maciços já
testemunharam azáfamas contrastantes com a vida pacata que por aqui hoje se
vive. À semelhança do que aconteceu um pouco por todo o Norte de Portugal,
também a Freita acolheu uma efémera porém marcante experiência de exploração
mineira, quando, nos alvores da segunda grande guerra, com a ilusão do lucro
fácil e rápido, de muitas paragens demandaram a estas terras pesquisadores e
aventureiros esventrando o solo um pouco por todo o lado, na esperança de
encontrar volfrâmio que, por se tratar de um minério fundamental ao fabrico de
armamento, assume um papel determinante ao esforço de guerra, atingindo nesse
contexto cotações excepcionais.
Toda
esta euforia não significou, porém, progresso porquanto não houve investimento.
Pelo contrário, com o fim da guerra e a descida na cotação do volfrâmio, este
deixou de ter interesse económico e os terrenos voltaram à sua função agrícola.
Proprietários de estabelecimentos comerciais com os seus livros de débitos
repletos viram-se na ruína e a década que se seguiu foi para todos muito
penosa. Foi como o abrupto acordar de um conto de fadas e subsequente mergulho
num pesadelo.
Também
acordávamos das nossas reflexões de cada vez que um de nós escorregava e se
estatelava com maior ou menor estrondo. Descemos vales. Subimos ravinas.
Caminhamos em leitos de rios e mudamos incessantemente de margem. Enchemos
cantis na mesma água onde mergulhávamos as pernas. E usufruíamos, desfrutávamos
daquela que estava a ser uma aventura sem par. Por vezes escorregávamos.
Blasfemávamos. Nos abastecimentos íamos encontrando cada vez mais companheiros
encostados. Respeitávamos cada vez mais a serra. Tivemos calor. Tivemos frio.
Vimos cair a noite.
–
Então?!?
–
Então o quê, Moutinho?
–
Comemos aqui uma bifana e uma canja e mandamos abaixo uma mini?
–
Já podias ter perguntado há mais tempo!
Sentado,
de prato na mão, continuava a ver passar-me diante dos olhos uma sucessão
interminável de imagens desordenadas. Montanhas, vales, rochas, rio, cabras,
árvores, luz, muita luz, breu, penedos, vacas, mais água, subidas intermináveis,
trilhos, musgo e verde, muito verde. Subitamente, um arrepio, de frio e de
emoção. O murmúrio de vozes à minha volta parecia distante e não conseguia
arrancar-me a esta confusão de sentimentos com que de momento me debatia.
Acabara
abruptamente, e de uma forma que não tinha imaginado, a minha mais marcante
experiência de montanha, feita na companhia perfeita do Rui. O resto já está
contado por muita gente.