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Procurar a fechadura às apalpadelas e experimentar uma das inúmeras chaves. A coisa começava a compor-se: acertei à primeira e transpus a porta, passando da noite para o breu. Com a luz do telemóvel como única fonte de luminosidade, abri gavetas e revirei armários até encontrar fósforos e duas velas. Chamei o pessoal e acendemos a lareira. Felizmente o fogão era a gás, e pudemos fazer um arrozinho de tomate para acompanhar os panados que já vinham prontos do Porto, tudo regado com Duque de Viseu.
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Instalamo-nos todos em torno da lareira, onde fomos jogando e beberricando até, já bem perto da meia-noite, sermos surpreendidos por uma repentina e quase sacrílega luminosidade: finalmente havia electricidade. Corremos para os quartos, fizemos as camas e ligamos os aquecedores no máximo; e em boa hora o fizemos, pois a luz haveria de fugir e voltar várias vezes ao longo da tempestuosa noite.
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O sábado amanheceu inesperadamente solarengo, se bem que com as marcas da tempestade bem espelhadas nas dezenas de laranjas que cobriam o quintal e pela vasta colecção de diferentes tipos de folhas que cobriam os nossos carros. Colocamos o peru (que já estava temperado de véspera) no forno e rumamos a Ponte do Lima, para um belo descanso activo pelas ruas daquela magnífica vila.
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.De regresso à aldeia e após o repasto, acompanhado por um belo Mazouco, seguiu-se um passeio higiénico pela mata, para facilitar digestões e respirar um pouco de ar do campo. O resto da tarde foi passada em reclusão, apenas com a companhia de um salpicão e de umas pretas frescas, em reunião preparativa daquela que será a verdadeira aventura dos Leões de Kantaoui em 2009 – a Maratona de Boston. Como metade da equipa mora a 300km de distância da outra metade, teremos que, a partir de agora, aproveitar todos os encontros para acertar pormenores.
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No final da tarde fomos a Viana do Castelo, recolher os dorsais e regressamos para a nossa personal pasta party, acompanhada de Adamado de Ponte do Lima. A prova era já no dia seguinte, pelo que era melhor abandonar o maduro tinto e passar para o verde branco.
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De noite não ouvi chover, pelo que erradamente assumi que estaria um magnífico tempo para a prova. Tão depressa abri as portadas da janela do meu quarto como elas se fecharam entalando-me o braço direito. Não foi preciso muita ponderação para que o pessoal da caminhada optasse por passar a manhã de domingo em volta da lareira.
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Os dois bravos lá partiram para Viana, com a sensação de que o carro teria pelo menos um dos pneus furados, tal era o vento que se fazia sentir (o boletim meteorológico tinha anunciado ventos de 120 km/h).
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Ainda hoje estou para perceber se choveu ou não. De facto havia muita água no ar, mas ela parecia mais soprada pelo vento, que a ia buscar ao rio, às poças de água, ao chão, aos telhados, eu sei lá, do que propriamente caída do céu. Vento, meus amigos, vento havia para dar e vender.
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.Fizemos a maior parte do aquecimento num estacionamento subterrâneo (isto começa a tornar-se um hábito) e lá vínhamos cá acima de vez em quando para espreitar o tempo, e logo voltando para a toca, quais suricates em dia de Inverno. Quando finalmente saímos da lura encontramos uma data de pessoas amigas, dos Leões do Veneza, dos Portorunners e muitos outros, mas só tiramos uma foto com o
Mark, pois a máquina já estava guardada no carro. Foto essa que se viria a revelar como um verdadeiro talismã, na medida em que todos batemos recordes pessoais.
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A dureza da prova ficou bem patente nas palavras saídas dos altifalantes que preveniam para estarmos bem atentos às indicações dos delegados da prova, na medida em que as marcações haviam sido levadas pelo vento. Lá partimos debaixo de um vendaval indeciso, sempre soprando com intensidades e direcções diferentes, cada um para fazer a sua corrida. Até à viragem, nos 11km, a coisa ainda foi, com os meus quilómetros a variarem dos 4:10 aos 4:25; mas a partir daí, mal rodei o bidão fiz dois kms seguidos a 4:50. Nessa altura deixei de pensar em recordes e a partir dos 13km comecei mesmo a contar os quilómetros. O 14º foi feito inesperadamente a 4:15 e voltei a ganhar alento, saltando de grupo em grupo, sempre entretido a ouvir falar galego (36% dos atletas a completar a prova) e a fazer contas de cabeça, oscilando muito nos kms, mas nunca mais passando acima dos 4:30.
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Quando o GPS apitou para os 20kms gastei as últimas forças para, contra o vento, fazer o meu km mais rápido de toda a prova a 4:03, e terminando com um tempo oficioso de 1:34:04, que oficialmente passou a 1:34:29, por causa da habitual demora a cruzar a linha de meta no início da prova. Na meta já me esperavam os meus amigos Paulo Martins, com tempo oficial de 1:30:42 e Mark Velhote, com 1:31:24. De registar que o meu GPS (e os de mais 2 amigos com quem confirmei) assinalou mais 215m, o que daria menos um minutito, mas enfim, sempre baixei 2 minutos e meio o recorde anterior. Os meus dois amigos, esses nem se fala, bateram em muito os seus anteriores recordes.
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Para o ano cá estaremos, ou talvez não ...
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